quinta-feira, 14 de junho de 2012

GUEVARA MORREU?

A NOTÍCIA da semana, sem dúvida, foi a morte de Ernesto Guevara, médico, argentino, marxista, que largou a medicina e a Argentina para lutar pelo marxismo. O Governo da Bolívia garante que o cadáver é do lugar-tenente de Fidel Castro. O defunto já foi deixado em cova-rasa, sem qualquer marca na superfície. O presidente Barrientos teve pressa de esconder o falecido. Cuba diz que não pode afirmar nem negar. Os jornalistas presentes levantam suspeitas. A família Guevara, também. Editoras correm atrás do diário do guerrilheiro, querendo lançá-lo em livro, mas a Bolívia mostra apenas cópias datilografadas do diário. O homem tido como o maior agente da subversão no Ocidente é, desse modo, glorificado, imortalizado, e em torno dele se forma um mito que persistirá em todos os espíritos, um verdadeiro endeusamento criado pelos seus inimigos...

Ernesto "Che" Guevara
Afirma Barrientos: “– É Guevara”. Diz um jornalista: “– Guevara é muito mais alto e mais forte que esse defunto aí”. Outro jornalista: “– O líder tinha cabelos pretos e este é ruivo”. Insiste a Bolívia: “– É Guevara. Vimos as impressões digitais. Vimos sua cicatriz na mão. Verificamos a falta de um molar”. Diz o pai de Guevara: “–Não creio que seja meu filho”. E o Governo da Bolívia: “– É seu filho, sim. Quer saber mais do que eu?”...

O pai e o irmão do guerrilheiro tomaram, as pressas, uma condução qualquer e foram bater na Bolívia. Não reclamaram o cadáver nem demonstraram o menor interesse em fazer isso. Quando chegaram ao destino, Barrientos já havia proibido a trasladação para La Paz e autorizado o sepultamento...

O general Ovando Candia disse à imprensa que Ernesto Guevara, momentos antes de morrer, declarara: “– Sou o “Che” e fracassei”. Não teriam sido das mais notáveis suas últimas palavras, como se pode observar. Mas o coronel Zentena Anaya desmentiu o general, num perfeito desrespeito à ordem hierárquica. Afiançou que o superior mentiu. Guevara não falara antes de morrer. E parece que está com a razão, porque o defunto apresentava profundo ferimento na garganta...

Alguns outros guerrilheiros, segundo os correspondentes internacionais, informam que o chefe “Ramon” não era Guevara, mas Ramon mesmo. Então o Governo da Bolívia desmente isso e afirma que o fim do líder foi o fim também das guerrilhas na América do Sul, pois só há nove insurretos em suas matas. E o francês Debray informa – segundo o próprio Governo da Bolívia – que o falecido lhe dissera: “– Só existe um Fidel Castro, mas os “Che” são muitos”...

Os técnicos norte-americanos – não se sabe se legistas ou papa-defuntos – informam que o cadáver é de Guevara. Esses técnicos, como tem sido amplamente noticiado, são agentes da CIA (Central Intelligence Agency), a mais poderosa organização secreta dos Estados Unidos, espalhada pelo mundo inteiro, com maiores poderes que os do Presidente daquele País. Sobre essa imensa organização, lemos o livro de David Wise e Thomas B. Ross,The Invisible Government, lançado no Brasil em 1965, pela Editora Civilização Brasileira, em tradução de Jório Dauster Magalhães e Silva, sob o título de O Governo Invisível (As Forças Ocultas nos Estados Unidos). É obra esgotada. A CIA, constituída de várias organizações e pessoas misteriosas, entre os quais se incluem os serviços secretos do Exército, da Marinha e da Força Aérea, inumeráveis técnicos em criptografia, propaganda, agitação e espionagem, empresas privadas, grupos acadêmicos, estações de rádio e de TV, uma companhia de navegação marítima e uma editora de livros, despende bilhões de dólares anualmente e funciona no mundo inteiro, promovendo questões como as invasões de Cuba e da República Dominicana (a primeira fracassou na Baía de los Cochinos), assim como dezenas de revoluções e deposições de governos legalmente constituídos em diversos países. Pois bem, os agentes da CIA foram chamados para identificar o defunto de Vale Grande. O Governo da Bolívia, na situação agitada em que vive seu País, não deve ter tido trabalho para arregimentá-los. Acho que bastou um apito, porque, sem dúvida, eles estavam em todas as esquinas. E, assim, os técnicos norte-americanos, agentes da CIA, não se sabe se legistas ou papa-defuntos, afirmam que o guerrilheiro morreu mesmo.

O repórter Irineu Guimarães, correspondente da France-Press, que foi colega de seminário de Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento da Inflação, e que, durante a campanha eleitoral de Flexa Ribeiro, foi honrosamente xingado por Carlos Lacerda, acabou expulso por Barrientos, da Bolívia, porque noticiou qualquer coisa de transporte feito em caminhões norte-americanos, quando o Governo da Bolívia queria que ele falasse em caminhões cedidos pela Aliança Para o Progresso. Mas teve tempo ainda de ver o discutido defunto e de entrevistar os guerrilheiros presos. Um destes, o “El Gamba”, segundo Irineu, fez declarações “muito sob medida para a imprensa”. Dentre elas: “– Sim, Guevara estava conosco. Conheci-o uma noite e não pude evitar dizer-lhe que o havia reconhecido. Por única resposta, sorriu-me e não proferiu uma só palavra. Era o chefe do nosso grupo”. E acrescenta o repórter: “Os comunicados e reportagens publicados nas últimas semanas sobre um Guevara enfermo, que se arrastava penosamente em lombo de mula, provocaram, por outro lado, muitas reservas”.

Assim, uns afirmam que o homem se acabou. Outros dizem que o defunto deveria ser maior. O Governo da Bolívia não deixou a família identificar o morto. Há em tudo isso, portanto, um ponto importante, muito importante mesmo. Uma pergunta que corre de boca em boca, não somente na minha rua, onde o jornaleiro chama a atenção geral para as manchetes sobre o assunto, mas em todas as ruas, por todas as cidades e países e continentes. É uma pergunta só:

– Guevara morreu?

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1967)

domingo, 29 de abril de 2012

DR. AGOSTINHO

NÃO HÁ um antigo trabalhador de jornal – redator, repórter, revisor, gráfico – que não tenha ouvido falar em Agostinho da Cunha. Melhor dizendo: Dr. Agostinho, clínico geral, geral mesmo.

Era um médico pobre. Para estudar, foi revisor de jornal. Trabalhou aqui no DN. Viu de perto as dificuldades de vida de quem segue, honestamente, esta profissão de escrever, revisar, compor, paginar, sofrer. Acho que, apesar dos pesares, Agostinho – quero dizer: Dr. Agostinho – ficou agradecido ao jornal por ter conseguido ser doutor. E prometeu a si mesmo (acho que prometeu) socorrer, sempre que possível, e de graça, os que trabalham em jornal.

Dai seu prestígio em todas as redações, em todas as oficinas. Qualquer um de nós tinha o direito de ir a seu consultório, na Rua da Assembléia, levar mulher e filhos, mãe velha ou pai esclerosado. Não esperava. Passava à frente de outros clientes. E, além de não pagar as consultas, recebia amostras grátis.

Muitas vezes, no fim de ano, fui procurado por um linotipista, um paginador, um gráfico qualquer, para assinar a lista do presente que seria dado, pelo Natal, ao Dr. Agostinho. Era tudo o que ele recebia em troca da dedicação à classe.

Em todas as oficinas, havia sempre um pequenino anúncio do consultório do Dr. Agostinho Cunha. Ele jamais pediu publicidade a alguém, ou pensou nisso quando passou a socorrer nossa gente sempre carecida Mas os gráficos decidiram compor o anúncio. Quando o secretário era do meu tipo, permitia sempre que o pequenino anúncio completasse uma paginação qualquer. E não sei dizer o número de ocasiões em que, na oficina, à hora de fechar página, observei:

– Oh, diabo, o diagramador se enganou. Há um buraco aqui.

– Quer que entrelinhe?

– Não, porque fica feio – gritava eu para o paginador. Veja se cabe aí um “Agostinho”.

Era uma festa! O anúncio – claro – ia caber de qualquer jeito. Representava ele a única forma de o pessoal da oficina demonstrar, publicamente, sua gratidão a Dr. Agostinho.

Quando o secretário era daqueles capazes de tirar mamadeira da boca de criança, os gráficos não discutiam: cotizavam-se, iam ao departamento comerciai e pagavam a publicação do “Agostinho”.

Por tudo isso não há um antigo trabalhador de jornal que não tenha ficado a dever ao Dr. Agostinho um benefício qualquer. Ora, o filho livrou-se da coqueluche; ora, a filha se curou das cataporas; ora, o pai com reumatismo, a mãe com erisipela E todos têm sempre uma história para contar:

– Meu filho teve convulsão. Telefonei para o Dr. Agostinho e ele largou os clientes esperando no consultório e velo na mesma hora. Salvou meu filho. E nem ao menos me deixou pagar o táxi.

Outro:

– Quando o fígado me atacou, Dr Agostinho foi lá em casa, todos os dias, durante um mês. Só deixou de aparecer, depois que fiquei bom. Gastou um dinheirão, para me curar.

De minha parte, não tive a ventura de conhecer, pessoalmente, Dr. Agostinho da Cunha. Somente seu nome estava nos meus ouvidos. Por todas as oficinas e por todas as redações me falavam a seu respeito. Em qualquer estante de ficada havia um anúncio seu, em quadro amarrado, pronto para ser publicado a qualquer momento, com ou sem autorização do departamento comercial. Chamávamos o anúncio de “Agostinho”. Tinha grande utilidade: servia para fechar página, sem que houvesse necessidade de o paginador entrelinhar a matéria.

Não tive a ventura de conhecer, pessoalmente, Dr. Agostinho da Cunha, mas estou solidário com a dor de meus colegas, sobretudo dos gráficos, os que mais precisavam de sua proteção.

E que vi muitos deles, em lágrimas, distribuir os anúncios das estantes de ficadas, porque os “Agostinhos” não tem mais serventia.

ÁGUA-FURTADA

HOMERO Senna é dos bons escritores deste Brasil cheio deles, e, não raro, maus Mas é desses talentos que só comparecem quando são chamados, porque, em caso contrário, escondem-se, ensimesmam-se, entregam-se a um mundo pessoal e intransferível como convite de baile. Uma vez chamados, entretanto, mostram o que valem e nada ficam a dever a muitos dos que merecem, de fato, respeito e admiração. Recomendo, por isso, o livro que Homero Senna acaba de editar pela José Olímpio e que foi a razão de ninguém me encontrar no último fim-de-semana, apesar de o sol convidar para a praia. Fiquei em minha varandinha de pensar, a sombra, na espreguiçadeira cor de jerimum, agarrado a “Gilberto Amado e o Brasil”, cujo prefácio é de Odylo Costa, filho. Como se não bastasse minha admiração por esse gigante que é o personagem nascido na Rua do Rosário, em Estância, Sergipe, a 7 de mato de 1887, as vésperas da penúltima partida do Imperador para a Europa, encontraria eu motivos para não ir à praia em Homero Senna. E não perdi a praia; acho que lucrei mais. *E FAÇO aqui um agradecimento aos telhadistas amigos, pelo fato de este simples Iolando, filho legítimo de Vitória de Santo Antão, sobrinho do Xandu, do Cazuza e do Chico, vir figurando entre os autores mais lidos nas bibliotecas do Instituto Nacional do Livro. No último boletim, o nº. 11, o movimento acusou o Iolando em segundo lugar. Apesar de estar sem livros à venda no momento, pois os dois volumes de “Telhado de Vidro”, editados pela BRADIL, acham-se esgotados e vão sair, agora, em 2ª edição, atingindo o total de 40 mil exemplares, não resisto à imodéstia de fazer este agradecimento. E o faço, também, em nome dos colegas Callodi e Walt Disney, os dois outros mais lidos, no movimento de 1.020 volumes durante o mês de setembro.

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1968)

domingo, 1 de abril de 2012

AUGUSTO VASSEUR

MORREU, há poucos dias, sem noticias nos jornais, esquecido do grande público, o músico e compositor Augusto Vasseur. Carioca nascido a 3 de setembro de 1899, contava 70 anos de idade. Pianista e violinista, tocou em sinfônicas, chefiou orquestras, fez arranjos, trabalhou durante muitos anos na Rádio Nacional e lançou dezenas de composições populares: Morena (xote), Evocando (valsa), Sorrindo (valsa), Nonô (choro), Meu Lamento (valsa), Trinas (fox), Bobinho (fox), Bondade (valsa), Nostálgica (valsa), Saia da Baiana (maxixe).


Augusto Vasseur
Figura alegre de boêmio, excelente amigo, Vasseur – e não poderia ser de outra forma – virou meu personagem no livro Memórias do Café Nice (Subterrâneos da Música Popular e da Vida Boêmia do Rio de Janeiro), que está sendo lançado pela editora Conquista. Relembro que ele me declarou, faz pouco tempo:

– Quando eu estava sem dinheiro, ia para o Nice, levando lápis e papel de música. Logo aparecia quem quisesse que eu escrevesse. Eu ganhava dez cruzeiros por peça. Cem cruzeiros por orquestração. Em duas horas, tomando cafezinho, defendia minha féria...

O chorinho Nonô, Vasseur compôs para homenagear o pianista Nonô, Romualdo Peixoto, tio de Ciro Monteiro e tio de Cauby, Andiara, Araken, Iracema e Moacir Peixoto. E o fox Trinas foi em homenagem ao pintor.

Comentei, em palestra com Vasseur:

– Curioso: você fez a música Trinas, fox, e o pintor era Trinas Fox.

– Não. Ele não se assinava Trinas Fox. Passou a usar esse nome, depois do êxito obtido pela música.

Até outro dia, encontrávamo-nos, quase todas as tardes, na sede da SBAT. Vasseur vinho sempre contar a última anedota. Tinha sempre fato novo para narrar. Não havia quem esperasse a ata de reunião do Conselho da SBAT, poucos dias depois de o abraçarmos pelo passagem de seu 70º aniversário, registrasse o voto de pesar pela morte do bom companheiro de todas as tardes.

Em muitas ocasiões, conversamos sobre o livro que eu estava escrevendo. Augusto Vasseur queria sempre colaborar. Quando me via, recordava episódios ocorridos entre compositores, no Café Nice que tanto freqüentamos e que acabou entrando para a história de nossa música popular. E me dizia, invariavelmente:

– Estou ansioso. Quero ser dos primeiros a lê-lo.

Mas se foi quase no dia em que a editora começou a distribuir o livro. Não chegou a ver o trabalho. Nem tive tempo de acrescentar seu nome à página de saudade que abre o volume e na qual figuram nomes notáveis do cancioneiro, amigos que não podem ser esquecidos.

Peço, portanto, aos que lerem o livro, a bondade de colocar, mentalmente, e nome de Augusto Vasseur na lista em que figuram Antonio Maria, Ary Barroso, Assis Valente, Custódio Mesquita, Geraldo Pereira, Haroldo Lobo, Ismael Neto, José Maria de Abreu, Lamartine Babo, Lauro Maia, Marino Pinto, Orestes Barbosa, Vicente Paiva e Wilson Batista.

TELHAS SOLTAS
• TATUAGEM – Qualquer psicólogo pode informar a quem se interessar pelo assunto o que significa a tatuagem. Basta lembrar que são raros os delinqüentes, os marginais, as decaídas que não ostentam tatuagens...
• CHICLES – Qualquer médico pode informar o mal que faz o hábito de mascar chicles. Muitas crianças já morreram sufocadas pela condenável massa. E é fácil de verificar o número das que passaram a sofrer de males estomacais e fé outras moléstias, em conseqüência do hábito de mascar chicles...
• PING-PONG – Qualquer professor pode informar que ping-pong é palavra inglesa, importada junto com o tênis de mesa, e que, há muitos anos, já foi aportuguesada e figura em qualquer dicionário de nosso idioma, como pingue-pongue...
• CONCLUSÃO – No entanto, o chicles Ping-Pong traz em sua embalagem uma espécie de papel para decalcomania, paia que as crianças aprendam a fazer tatuagens...

ÁGUA-FURTADA
DÊEM LIVROS de presente pelo Natal. A Brasiliense lançou Administração Organizada, de Albert K. Wickesberg, em tradução de João M. P. Albuquerque. Livro útil. *E, PARA CRIANÇAS, Lapinha de Jesus, o Natal acontecendo num arraial do interior brasileiro. Em prosa e em versos. Logo na abertura do álbum, um poema de Carlos Drummond de Andrade: Acontecimento. Lançamento da Vozes. Presépio de Frei Tiago Kamps. Texto de Adélia Prado e Lázaro Barreto. Fotos de Gui Tarcísio Mazzoni.

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1969)

domingo, 25 de março de 2012

CURSO DE CAIXEIRO

O INSTITUTO Nacional do Livro vai instituir curso para caixeiro de livraria, a partir de 4 de maio. E a iniciativa merece os chamados encômios.

Acho importante qualquer medida que procure mostrar o livro, seja a quem for. Muita gente tem de saber que não há nenhum mistério num simples volume e que o objeto em si, encadernado ou em brochura, não é tão desprezível como dizem os poderosos membros da Analfabrás, a gloriosa instituição do Grande Trianon, na Avenida Luís de Vasconcelos, 252, em pleno coração da cidade entre os jardins do Monroe e o Passeio Público.

O fato de, surpreendentemente, o livro estar sujeito a censura, por culpa exclusiva da bonita Leila Diniz, dá idéia de que nada existe sobre a terra tão perigoso como o amontoado de folhas de papel numeradas e encapadas, com um título e nome de um irresponsável no alto – um troço que só serve mesmo para alimentar traças, embora algumas pessoas o comprem a metro quando aconselhadas pelos arquitetos de interiores...

Ainda outro dia, um vizinho me disse, a propósito da mudança que fez da Tijuca para Copacabana:

– Meu filho não tem jeito. Gasta fortunas em livros, O caminhão do Gato Preto fez mais uma viagem para transportar a biblioteca dele. O livro é um trambolho, o senhor não acha?

– Acho.

Numa festa de caridade, a mocinha ganhou, no sorteio, os cinco volumes do Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, na excelente edição da Delta. E ouvi quando confessou à amiguinha que estava a seu lado:

– Que azar! Eu queria tanto o liquidificador!...

O noticiário da imprensa – por sinal, tão reduzido ultimamente – focaliza, nas questões nacionais, o Esquadrão da Morte, a seleção de formigas que nem são saúvas, os assaltantes de motoristas e outros latos que conseguem chegar às manchetes ou aos títulos gordos. No mesmo diapasão, por alguns dias, pouco depois da entrevista de Leila Diniz ao Pasquim, surgiram notícias sobre a censura de livro e foram focalizados Pontes de Miranda. Jorge Amado, Érico Veríssimo, Tristão de Ataíde, Carlos Drummond de Andrade, Marques Rebelo, Austregésilo de Ataíde, muitos outros, protestando todos contra o decreto que tomou o nome da bonita atriz de novelas. O cidadão verde e amarelo, sempre mal informado, acaba confundindo tudo e considerando o livro tão perigoso quanto os assaltos e o Esquadrão, ou tão fadado ao fracasso como o selecionado que ninguém acredita passe dos primeiros jogos, no México. E isso afasta ainda mais o cristão comum do livro. E aumenta, cada vez mais, o prestígio da Analfabrás...

Eis por que acho importante o curso para caixeiro de livraria. Aconselho até que pessoas não interessadas na profissão de vender volumes, porque têm outros ofícios mais rendosos como os de advogado, jornalista, médico, deputado (estadual ou federal), crítico literário, radialista, diretor de TV, senador, banqueiro e, principalmente, delegado de polícia arriscado a ser censor – aconselho até que pessoas não interessadas na profissão se inscrevam no curso e verifiquem que o livro não é nada do que dizem...

E seria ideal que o Instituto convidasse a bonita Leila Diniz para paraninfar a primeira turma de caixeiros diplomados...

TELHA SOLTA

• AURÉLIO – Acha-se internado no Hospital dos Servidores do Estado, onde se submeteu a uma intervenção cirúrgica, o escritor e professor Aurélio Buarque de Holanda. Foi noticiado que, em virtude de estar doente, o autor do Vocabulário Ortográfico Brasileiro deixou de votar na Academia Brasileira de Letras, para preenchimento da vaga deixada por Múcio Leão, na cadeira 20. Mas não houve bem isso. Os membros do Pequeno Trianon podem votar por correspondência. Apenas, Aurélio Buarque de Holanda se absteve de votar...

• KURI — Maria Beatriz F de Sousa se assina Kuri. Quando li os versos da jovem, ainda inéditos, há dois anos atrás, aconselhei que ela os publicasse. Kuri se animou e lançou, pela Pongetti, o Lugar Nenhum. Recebeu aplausos da crítica. Foi festejada. Obteve êxito. Deixou-me feliz. Agora, ela reaparece nas livrarias, através da mesma editora, com Poemancipação. Capa de Vitória Gondim, de 5 anos de idade. Claro que seus poemas, desta vez, são mais adultos, mais poemas, mais poemancipação mesmo. Não poderia ser de outra forma. E o fato mostra como foram acertadas as previsões Que todos fizemos do bom futuro que aguarda a jovem e talentosa poetisa que estará autografando o novo livro, no dia 7 de maio, a partir das 20 horas, na Eldorado, Avenida Copacabana, 1189.

ÁGUA-FURTADA

LANÇA a Editora Conquista a 2ª edição de Memórias do Café Nice (Subterrâneos da Música Popular e da Vida Boêmia do Rio de Janeiro). A nova edição já está sendo distribuída às livrarias e pode ser encontrada na Feira do Livro armada na Cinelândia. Ajudem o Iolando a comprar um sítio como o Rócio, em Petrópolis, com os direitos autorais...

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de maio de 1970)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

GANHEI NA LOTERIA

Em companhia de velho e bom amigo, tomava eu um refrigerante, no “Amarelinho”, numa das mesas de calçada. O vendedor da loteria, depois de haver estudado a direção do vento, fingiu que um bilhete se largara de sua mão. E o “premiado” veio acabar a meus pés…

— Isto é a sorte a seu favor, moço — disse-me. Compre este elefante.

— Elefante não voa…

Um outro, em plena Avenida Rio Branco, deixou cair um bilhete. Apanhei o papel, mesmo sabendo o que me ia acontecer, e fui atrás dele:

— Isto caiu de sua mão.

— Obrigado. Mas vai ver que foi a sua sorte, que fez com que esta águia caísse, para o senhor ganhar a sorte grande.

— Águia não cai assim. Voa…

Outros gritam pregões que divertem:

— 1713! Olhe o 1713! Quem nasceu nesta data?… (“Brício de Abreu compraria este bilhete, se estivesse aqui” — pensei, certa vez…).

São os truques dos vendedores de bilhetes, para abusar da superstição da freguesia. E os supersticiosos compram, graças a isso, a sorte que não vem…

Terça-feira, à saída de restaurante, fui abordado por um desses vendedores:

— Veja, cavalheiro. Tenho o n° 25713. É, exatamente, a chapa de seu carro. Vai correr amanhã. Custa, apenas, 25 mil cruzeiros. Compre, por favor. É a sua sorte.

— Não. Obrigado.

— Amanhã, o senhor poderá receber 75 milhões, antes de sair o Cruzeiro Novo.

— Se receber 75 milhões, morrerei de emoção ou acabarei na Colônia Juliano Moreira, entregue aos cuidados do Dr. Raphael Quintanilha. Prefiro continuar pobre, mas ajuizado.

— É a sorte.

— A sorte não dá duas vezes. Já deu a primeira, sendo o número do meu carro.

O companheiro a meu lado ainda sugeriu um gasparinho, mas o vendedor queria negociar o bilhete inteiro. Em conseqüência, passei a quarta-feira preocupado. Se desse o número de meu carro, não poderia queixar-me. Eu mesmo chutara a sorte. E enfrentei terrível drama de consciÊncia.

Na quinta-feira, outra vez em companhia do mesmo amigo, examinei a lista de resultados da Loteria Federal. Ao ver o 1° prêmio, não contive o grito:

— Heureca!

— Perdeu?

— Não; ganhei!

É fácil de imaginar minha alegria: dera o 8418 e eu ganhara 25 mil cruzeiros…

TELHA SOLTA

POSTO – Adir Augusto Gonçalves e Nilo De Lucca promoveram churrasco, dia 22 último, no Quilômetro 22 da Rio-São Paulo, para inauguração do posto de gasolina “Tio Luís”. Compareceram autoridades, jornalistas e convidados especiais. No melhor da festa, um Gordini e um Aero-Willys se beijaram violentamente, bem em frente ao posto. Como ninguém se feriu, o desastre foi grandemente aplaudido pelos presentes, os motoristas acabaram convidados para o churrasco e incontinente ambos os carros foram recuperados, dando margem a que os serviços do posto entrassem, oficialmente, em função… E só não se bebeu gasolina!…
CRÔNICAS – E Fernando Sabino publica, pela Editora do Autor, mais um livro com suas excelentes crônicas: A Companheira de Viagem. O volume é produção brasileira, mas a página com a dedicatória veio de Londres. Sabino é o escritor leve, acessível, bem-humorado, cujos trabalhos recebem sempre aplausos justos do público e da crítica.

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1966)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O HUMOR DE ARY BARROSO

Jamais Ary Barroso se zangou. Cada vez que fingia irritar-se, arrancava as maiores gargalhadas de quem estivesse por perto. Quando xingava alguém, esse alguém ria. Se ridicularizava um calouro, o calouro até se sentia feliz. Se ficava inimigo de um companheiro de bar, voltava no dia seguinte e abraçava o “inimigo” inteiramente esquecido de que estavam de relações cortadas. Uma vez, disse-lhe:

– Ary, eu pagaria ingressos para conversar com você. E pagaria em dobro, quando você estivesse dando broncas.

Ary Barroso
Foi toda uma vida de irritabilidade artificial, de estouros de superfície. No fundo, porém, excelente humor. Em que isso pareça absurdo, porque uma hepatite o arrancou de nosso convívio. Ary Barroso sempre foi homem de ótimo fígado...

Até depois de enfermo, quando reagiu bem à primeira fase da moléstia,, há coisa de dois anos, e, pode sair, ainda apareceu pelos bares em que freqüentávamos, transformando a doença em motivo de riso:

– Garçom, traga-me uma garrafa de água mineral.

(Até o garçom ria...)

Poucos homens conheci tão autênticos, tão fieis a si mesmos. o Ary Barroso de calção na praia ou de pijama em casa era exatamente o Ary Barroso que se dirigia ao Presidente da República; era exatamente o mesmo do microfone, das câmaras, do bar – o dono de personalidade impressionante. Não abria mão do direito de ser ele próprio, doesse a quem doesse.

Antonio Maria
Antonio Maria foi de seus melhores amigos. Muitas vezes discutiram, com espírito, usando pretextos divertidos, inclusive na televisão. Na realidade, porém, eles se queriam como irmãos. E, num encontro, Ary Barroso, com aquela irreverência toda sua, pediu:

– Maria, cante um princípio de Aquarela do Brasil.

– Para quê?

– Cante. Quero ouvir. Cante.

Tanto insistiu que Antonio Maria cantou:

– “Brasil! Meu Brasil brasileiro...”

– Chega.

E com a maior ironia:

– Agora, peça para eu cantar Ninguém me Ama, pra ver se eu sei...

Em seu programa na Televisão-Tupi, uma tarde, condenou certos sambas:

– Há letras que corrompem, que deseducam, que são prejudiciais à juventude. Há versos que ensinam a beber. Um deles diz “Afogue a saudade nos copos de uma bar”. Isto é condenável!

Parou. Arregalou os olhos. Caiu em si:

– Desculpem. Esse samba é meu. É o Risque...

De outra feita, respondeu a um crítico:

– Ele atacou meu samba. Disse que os versos são medíocres, porque eu falo em “mero passageiro”. E afirmou que mero é peixe.

Limpou os óculos e se fingiu de irritado:

Mero, peixe, é substantivo. O mero que empreguei é adjetivo. Quer dizer: “simples, extreme, genuíno, puro”...

Soltou risinho e continuou:

– Adiante, como eu falo em “beijo que mata”, o crítico declarou que beijo não mata. Outra bobagem: mata, sim. Mata por asfixia, mata transmitindo micróbios, mata por estrangulamento, mata se o namorado meter uma faca nas costas da namorada, e mata por nau hálito, porque, quando eu era rapazinho, tive uma namorada que me beijou e eu “morri” devido ao seu mau hálito...

Pouco tempo depois, no Parque Guinle, um rapaz, durante o beijo, matou a namorada com uma faca. Fiz ver ao Ary a coincidência. E ele:

– Eu não disse que beijo mata?

Há alguns anos, quando seus filhos eram solteiros, certo rapaz do Leme andou pretendendo casar-se com a Mariuza, sua caçula. Ary chamou o Flávio, o filho mais velho:

– É preciso acabar com esse namoro.

– Bem, papai. Mariuza não dá a menor atenção ao galã. Pode ficar descansado. Mas, se desse, que teria demais? São dois jovens.

– Não, senhor. Esse rapaz bebe.

– Mas, papai, o senhor também não bebe?

E Ary, num rompante:

– Mas não estou querendo casar com a Mariuza...

Em luta com seus calouros do rádio, dava espetáculos à parte. O calouro – e eu já tive ocasião de escrever isso – é bípede irracional. Um deles anunciou, ao microfone:

– Vou cantar o samba Escrava Isaura, do Dr. Ary Barroso.

O compositor ficou surpreso. Jamais fizera música com o mesmo título do famoso romance de Bernardo Guimarães:

– Palavra de honra, meu amigo. Não conheço este samba. Mas pode cantá-lo.

O calouro interpretou Inquietação, cuja letra diz: “Quem se deixou escravizar etc.” Mas disse o verso da seguinte maneira:

– “Quem se deixou escrava Isaura etc.”

Tom Jobim e Vinícius de Morais
Outro ia cantar composição de Vinícius de Morais e Tom. Nunca Ary permitiu que os autores deixassem de ser enunciados em seu programa. Na hora, o calouro se esqueceu dos nomes. O animador já ia proibir que ele se apresentasse, quando o coitado se lembrou de um:

– O samba é de Vinícius.

Ary citou o parceiro do poeta:

– E o Tom?

O calouro:

– Ré menor...

Do mesmo gênero, na Rádio Nacional, em programa de perguntas que Ary animou:

– Quantas sinfonias Beethoven compôs?

– Uma – respondeu o concorrente.

– Qual foi?

– A Nona...

Assim era o bom Ary Barroso. Com ele morreu dos mais sadios sensos de humor desta praça – humor que, não raro, fingia ser zanga, ainda para fazer rir. Viveu sempre de música, inclusive ao som da música das gargalhadas. Foi todo alegria. Por isso, o acaso quis que ele fechasse os olhos em pleno carnaval. O acaso, somente, não; ele bem o quis. Detestava o sossego, a quietude, a tristeza. Tanto que, poucos dias antes, José Maria Scassa o encontrou cantando em seu leito de dor. E Ary Barroso explicou:

– Estou cantando, Scassa, porque o silêncio da morte é fogo!

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1964)

domingo, 29 de janeiro de 2012

TERRA DO “NÃO PODE”

Existe a Lei do Silêncio. Ele, porém, não conseguiu dormir. O morador do apartamento de cima completava cinqüenta anos e a sua vitrola fez “twist” até de manhã. A construção ao lado emendou o barulho, batendo estacas “Franklin”, as mais batidas desta freguesia.

Ao descer do elevador, outro vizinho puxava charuto chegado ao de Churchill, junto do aviso: “É proibido fumar”.

O chofer de táxi não pode recusar passageiro, mas o único do ponto, lhe disse:

– Para o Centro não vou, só se o senhor pagar a volta.

Os veículos coletivos são obrigados a encostar no meio-fio, mas o lotação, como sói acontecer, parou lá no meio da rua. Ele correu e pegou. Sentou-se ao lado de outro charuto, cujas cinzas vinham lembrar, em sua roupa, que não se pode fumar nos coletivos.

Além disso, o motorista era daltônico: passava por tudo que era sinal vermelho. Ao lado do daltônico, em pé, o sujeito baixinho contava, às gargalhadas, o último piquenique da Barra da Tijuca, onde uma Dona Xandoca quase se afogou, com seus 110 quilos. Dona Xandoca era nadadora de grande calado. E, bem na cabeça do narrador, o aviso: “É proibido falar ao motorista”.

Chegou à cidade mais cedo do que pensava. O lotação foi a oitenta ou a noventa. Lembrou-se de que os coletivos são obrigados a usar tacômetro, para que não passem de sessenta...

O café da esquina estava sendo lavado, no chão – porque botequim só lava mesmo o chão. O faxineiro puxava a água até a calçada, onde a espuma do sabão corria para a sarjeta. Por curiosidade, perguntou:

– Não é proibido molhar a calçada desse jeito? Alguém pode escorregar na espuma e cair.

– Seria um tombo gozado – respondeu, às gargalhadas, o faxineiro.

Bem, leitor, esse foi o começo de dia, ontem, deste Iolando, na terra do “não pode”, onde o proibido se faz e o obrigatório não é atendido. Quem começa o dia assim, sente a irresistível necessidade de sugerir determinação legal que faça as leis serem cumpridas: “É proibido cumprir a lei”...

UMAS & OUTRAS

SEMELHANÇAS – Dorival Caymmi comprou a cabeleira grisalha na mesma loja em que Sílvio Caldas comprou a dele (a do compositor Bororó é imitação). Silvinha Telles canta com a mesma boca de Aracy de Almeida. Um punhado de artistas usa, agora, o mesmo nariz, tirado da forma do Dr. Ivo Pitangui: Marlene, Neusa Maria, Dóris Monteiro, Vera Lúcia, Heleninha Costa, Mariza Barroso, Renata Fronzi, a garota-propaganda Ana Maria, a cômica Zezé Macedo, o produtor Wilton Franco, o figurinista Sorensen, e o cronista de rádio José Fernandes. Somente a locutora Marize, depois da plástica, ficou diferente. Seu nariz saiu igual ao do sambista Gasolina...
AMANDO – O deputado Amando da Fonseca vai renunciar. Absolutamente certo: não tomará posse. Em agosto, concedeu entrevista ao programa “A Cidade Pergunta”, da TV-Continental, declarando que não aceitaria o mandato se obtivesse menos de 20 mil votos ou se o jornalista Ib Teixeira conseguisse a metade de sua votação. Até o 8º Boletim do TRE, faltando apenas 100 urnas, Amando da Fonseca está com 5.840 votos e Ib Teixeira com 6.684. A entrevista foi gravada em “vídeo-tape” e a TV-Continental deverá passá-la a qualquer instante, para ativar a memória do deputado.
LIVROS – As edições que mais se vendem são as de obras técnicas, científicas, didáticas, trabalhos de consultas, dicionários. Mas nos levantamentos e pesquisas publicadas não aparece um só livro de Antenor Nascentes, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira e outros, cujos trabalhos vão sempre além de 100 mil exemplares e se esgotam…
“AMÉRICO” – Há, também, a história de “Américo – Este Mundo e o Outro”. Esplêndido romance de Milton Pedrosa, editado pela Civilização Brasileira. O enredo nasceu de uma narrativa de chofer de táxi, que é espírita. O autor, agora, tem sido homenageado por tudo que é umbandista do Rio. E deverá receber diploma de médium honorário.
PRISÃO – Diz o parágrafo 20, do art. 141, da Constituição: “Ninguém será preso senão em flagrante delito”. Entretanto, uma usina de São Cristóvão demitiu José Rodrigues de Oliveira e não quis pagar indenização. Quando a vítima foi cobrar, um dos diretores da usina telefonou para o 17º DP. O Comissário de dia mandou prender e espancar José, sem culpa formada, sem flagrante delito. Somente depois que o sindicato interveio, o operário foi posto em liberdade. Quem vai responder por isso? Eis uma pergunta ao Curador Newton Marques Cruz, chefe de Polícia...

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1962)