Digo aos meninos, todos os dias, que há uma técnica para tudo.
Nada se faz de orelhada, garotos. É excelente, por exemplo, numa noite de lua
em Paquetá, depois de a gente passar o dia à boca dos pesqueiros ferrando
peixe, é excelente um violão pinicando o lá menor, na seresta, com um pouco de
pinga para molhar a emoção. Sou freguês dessas noites. Mas beliscar violão em
lá menor não é ser músico, meninos. Até eu sei fazer lá menor desde pequeno.
Música é olhar o pentagrama e correr o braço do violão, como os dedos ágeis e
dizer pra gente uma suíte de Bach, como a adorável nº 2, em si menor, em sete
partes. Bach era o “Pai da Música”, meninos. Schumann disse, certa vez, que “a
música deve a Bach tudo aquilo que uma religião deve ao seu fundador”. Querem
ver por que tudo é a técnica, mesmo a arte – ou melhor: sobretudo a arte? Faz
215 anos que o “Pai da Música” morreu; no entanto, as dissonâncias, que hoje
caracterizam tanto a música moderna são dele. Têm mais de dois séculos... Os
russos foram buscá-las em Bach; os americanos foram buscá-las nos russos; e nós
fomos buscá-las nos americanos, para que todos gostassem de nossa bossa-nova...
Não sou contra a coisa moderna, não, meninos. Pelo contrário, sou
muito a favor. O bom, para mim, não tem idade; basta ser bom. Não acredito é no
improviso, na orelhada, na falta de técnica, na ausência de estudo. E é isto
que está dando tanta produção ruim, atualmente, em todos os setores.
Vocês pegam um adepto da música de ouvido, admiram-no, elevam-no
ao chamado “estrelato”, pagam-lhe fortunas. Mas fico pensando: “- Que maravilha
seria se este ás tivesse estudado!”
Ainda há dias, uma estação de televisão apresentou quatro
pianistas ao mesmo tempo. Foi número agradável. Um deles, porém, não sabia
música. Seguia, apenas, sua intuição. Qualquer pessoa, ao longe, mal ele se
sentou no instrumento, viu que tocava de ouvido. Uma platéia culta – desculpem,
meninos – não o aplaudiria. E se músicos no Brasil não precisassem tanto,
porque são miseravelmente pagos, poderiam por em jogo o justo orgulho
profissional e não aceitar aquela companhia...
Conto-lhes um fato, porque ele é motivo de orgulho da vida de
Custódio Mesquita, meu saudoso amigo, grande compositor popular brasileiro,
injustamente esquecido. Custódio escreveu peça para o Municipal, convidado pela
esposa do presidente da República. Quando compareceu para reger a orquestra, os
executantes se negaram a obedecer sua batuta, porque ele não tinha curso de
regência...
Pois sabem o que ele fez – isto depois de ser compositor conhecido
e aplaudido em todo o Brasil? Tirou o curso. Compareceu, tempos depois, ao
Municipal, com o diploma de regente sob o braço. A orquestra o recebeu de pé,
emocionada, a aplaudi-lo com entusiasmo. E Custódio Mesquita regeu a orquestra.
Isso tudo vem a propósito, meninos, dos que querem escrever,
argumentando:
- Gramática é tolice. Ortografia é confusão. Ninguém liga mais
para isso. Os grandes escritores não sabem gramática.
Têm de saber, meninos, ao menos o essencial. De fato, uma coisa é
escrever bem e outra é escrever certo. Nem sempre os que escrevem certo
escrevem bem. Mas é tão saudável ler quem escreve bem e certo!...
Vocês usam esse argumento, mas perguntam, de quando em vez:
- A distância leva acento de crase?
O companheiro responde:
- Não. Usa-se a crase, somente, quando a distância é determinada.
Todavia, não devia responder. Se vocês acham que “ninguém liga
mais para isso”, por que perguntam? Por que não redigem como os colunistas
sociais, para que outros corrijam suas matérias? Existe, no jornal, o copy-desk.
É o corpo de redatores que refundem as matérias. Estes sabem se a distância
leva crase. Deixem por conta deles...
No entanto, vocês perguntam. Se perguntam “ligam para isso”.
Disfarçam, porque não sabem. Não sabem, porque não estudam. Estudem, meninos!
Sei que é duro, mas evita humilhações. Ninguém quer puristas, donos de
correções absolutas, nos jornais; quer, porém, que, amanhã, não mais a
ignorância consagrada seja constante motivo de chacotas...
E que vocês não participem do imenso Festival da Besteira que
invade o Brasil, como tão bem definiu a situação atual, em esplêndido achado, o
cronista Stanislaw Ponte Preta. Porque a situação atual do Brasil é
conseqüência da esplendorosa ignorância nacional...
(In Telhado de
Vidro. Diário de Notícias,
Rio de Janeiro, 27 de agosto de 1965)