Sou homem perigoso. Nenhum
Mineirinho ou Zé da Ilha, Sete Dedos ou o Vampiro da Avenida Brasil, Lampião ou
Antônio Silvino, nem Barba Azul, Poulailler, Fra-Diavolo, Al Capone, Jack, o
Extirpador, Sawney Bean, Joseph Albert Guay, Jimmie Nannery, Maurice Rousson,
nenhum deles, até hoje, cometeu maiores atrocidades que eu, ou foi mais
perigoso às instituições.
Sou jornalista de alta
periculosidade.
Conto o que sei e o que vejo,
porque sinto a volúpia de informar. É vicio que tenho, este de noticiar com
segurança, de dizer a verdade. Então, um Poulailler, que cometeu mais de
setecentos crimes, não chega a meus pés. Sou pior. Setecentas vezes pior.
Matar, massacrar, espancar, dar choques elétricos, usar pau-de-arara, maçarico,
cassetete, sabre, pata de cavalo, matar jovem indefeso de 18 anos – nada disso
tem a gravidade do crime de informar. Este tipo de criminoso sofre reprimendas
terríveis:
– O senhor noticiou que
mandamos tosquiar estudantes e que os mantivemos detidos sob sevícias.
– Foi a verdade. É meu dever.
– Mas sua notícia é alarmista.
Cria pânico na população. O senhor está tentando incompatibilizar o Governo com
o povo.
– Juro pelas barbas de Santo
Antão como jamais pensei nisso.
– O senhor pode jurar, mas
cometeu abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e
informação.
– Desculpe, mas meu fotógrafo
está machucado. Meu repórter ficou hospitalizado, com suspeita de fratura do
crânio. Eu, apenas, publiquei as fotos de jornalistas, estudantes e povo
apanhando. É meu dever. Não estou fazendo campanha contra ninguém, não quero
incompatibilizar ninguém, não sou alarmista nem penso, jamais pensei, em
subverter a ordem pública. Muito pelo contrário, adoro a ordem, a disciplina, o
respeito às leis.
– Comunista!
Já escrevi, certa vez, que não
é possível pegar um elefante enfurecido e convencê-lo de que pertencemos à
Sociedade Protetora dos Elefantes...
Tenho de refrear, então, meus
instintos bestiais, monstruosos, lombrosianos, de informar. Não devo escrever
sobre tudo o que sei, sobre tudo o que vejo – e pouca gente sabe que não
escrevo tudo o que vejo nem tudo o que sei...
Então, adoro minha varandinha
de pensar. Teoricamente, tenho à minha disposição uma área de 8.513.841 quilômetros
quadrados, mas acabo de descobrir que tanto espaço me asfixia. Só consigo mesmo
pensar e respirar livremente na varandinha de um metro por três. É minha jaula
aberta. Onde não sou perigoso. Doravante, darei notícias aos senhores sobre
ela. Não cometerei o crime de informar sobre tudo; cometerei, apenas, as
insignificantes contravenções de dar notícias sobre minha varandinha de pensar.
Contando a história da vizinha
que muda de roupa com a janela aberta, não creio que cometa abuso no exercício
da liberdade de manifestação do pensamento e informação...
TELHAS-VÃS
·
JOEL SILVEIRA – Meu irmão Joel – irmão pelo
afeto – também é pior que Jack, o Extirpador. Sim, porque figura entre os
jornalistas que não têm medo de enfarte nem estão interessados em convencer ao
ilustre membro da família dos Proboscídeos de que pertence à Sociedade
Protetora dos Elefantes. Assim, Joel Silveira é um monstro, um Jack, perigoso
para as instituições. Não sabe mentir aos seus leitores, não sabe escrever o
que os outros pensam, não faz da profissão escada para altas posições, chega
pobre como o Iolando ao fim de uma carreira exercida com amor e abnegação. Pode
ser comparado pelos orientadores da inteligência nacional a um criminoso da
importância de Henri-Desired Landru, aquele conquistador-assassino de numerosas
noivas. Também vai ficar na história como perigoso. Agora mesmo, acaba de
cometer crime que é fichinha junto de um latrocínio em dois velhos: publicou
pela Biblioteca Universal Popular o livro “Um Guarda-Chuva Para o Coronel”, no
qual analisa a política nacional, com o talento e o estilo leve que os leitores
conhecem. “Valerá a pena tanto esforço diante da mediocridade e insignificância
de nossas elites dirigentes?”, pergunta Paulo Francis, na apresentação do
livro. Respondo eu: – “Acho que não. O melhor é Joel arranjar uma varandinha de
pensar. Não ofereço a minha porque é pequenina. Não cabem duas lacraias. Também
não sei se será fácil encontrar, no momento, outro recanto em que se possa
pensar e respirar tão livremente. Mas quem sabe se a sorte ajudará o excelente
e talentoso companheiro para ele conseguir outra varandinha, de apenas um metro
por três, em 8.513.844 quilômetros quadrados? Pensar e respirar não fazem
barulho. Não incomodam os vizinhos. Ninguém sabe que estamos respirando e
pensando. É bom que é danado. Arranje outra varandinha, Joel”.
·
HÉLIO SODRÉ – Juiz e escritor. Veio à redação.
Matou as saudades de seu tempo de jornal. “Escola de vida”, exclamou. Visitou o
Iolando e trouxe ao pacato antonense os três volumes, de sua valiosa “História
Universal da Eloqüência”, lançada pela Livraria Forense. É a ação dos grandes
oradores, através de todos os tempos. No primeiro volume, fala da antiguidade
clássica e do renascimento; no segundo, sobre os povos modernos; e no terceiro
sobre os brasileiros. Trabalho que não pode faltar às boas estantes. Estou com ele
aqui na varandinha de pensar, ao lado da espreguiçadeira. Sodré também é
companheiro de hoje. Nem tudo está perdido.
ÁGUA-FURTADA
“A DOUTRINA Social da Igreja”, de Henry George e Leão
XIII, é livro indispensável à compreensão do pensamento católico sobre as duas
questões que, atualmente, agitam os povos e revolucionam o mundo: a terra e o
trabalho. Pelo menos é o que informa a Gráfica Editora Laemmert. Ao ver isso,
desisto de levar o volume para a minha varandinha de pensar. Nasci de família
católica, fui batizado e crismado, fiz a Primeira Comunhão, tenho cá minhas
simpatias por Santo Onofre e por São Benedito, padre Pita quis que eu fosse
coroinha na Matriz de Vitória de Santo Antão, assisti às aulas de catecismo do
coadjutor, mas não quero ser tido como subversivo, imbuído da doutrina social
da igreja, sobretudo quando esta focaliza o trabalho e a terra. Não me adianta
ficar na mesma célula de Dom Hélder ou na de Dom José de Castro Pinto. Já disse
que na varandinha deste escritório desarrumado a espreguiçadeira é apenas para
que eu possa pensar e respirar livremente. Qualquer dia haverá quem passe a
considerar a missa uma concentração perigosa para as instituições, o que,
aliás, já aconteceu no dia da missa de sétimo dia pela alma do estudante Edson
Luís de Lima Souto. Os estudantes e o povo agrediram a polícia, porque o
estudante se suicidou no Calabouço. Foi uma barbaridade! Alguns estudantes
pegaram ingênuos e indefesos meganhas e tiras do DOPS e prenderam esses
inocentes, maltratando-os, seviciando-os cruelmente. Pobres vítimas. Os
estudantes são uns monstros!...
(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 21
de abril de 1968)