quinta-feira, 31 de março de 2016

O BONÉ

Meu grande sonho era possuir um boné cinzento, de casimira, tal qual o do manequim da “Alfaiataria Londres”, na Rua Nova. Tinha de esperar, porém, que meu avô aparecesse pelo Recife. Esperei meses, mas deixei o manequim mais nu do que qualquer vedete de teatro de revista. Levei o boné de meu sonho e ainda mais a calça e o paletó pregueado nas costas, tudo muito à moda do inverno londrino, apesar do calor recifense em novembro...
Guardei o traje, carinhosamente, a fim de estreá-lo domingo, quando o Moderno iria exibir, na matinal, o filme brasileiro Cidade Mulher, com Bandeira Duarte, sob a direção de Humberto Mauro. E passei o resto da semana a visitar, duas ou três vezes por dia, meu uniforme londrino, no guarda-roupa, para ver se estava tudo em ordem.
No dia, madruguei, emocionado. Depois do banho, a fatiota. A seguir, o bonde de Campo Grande, a caminhada ao sol pela Rua do Sol, à margem esquerda do Capibaribe, e, às 9 horas, já estávamos (eu e meu boné) em pleno saguão do Moderno, na Praça Joaquim Nabuco, à espera de Bandeira Duarte, cuja aparição era marcada para as 10 horas. Eu morava no Beco das Almas (claro que por trás do Cemitério de Santo Almiro), lá no fim da Avenida Arquimedes de Oliveira, quase no cruzamento com João de Barro. E, quando passei, todos os vizinhos surgiram às janelas para ver meu boné – e tenho vaga idéia de que alguns até bateram palmas...
No saguão do Moderno, olhando os cartazes, vi anunciado Haroldo Trepa-Trepa, O Último dos Moicanos e outros filmes da época. Prometi a mim mesmo não mais perder as matinais seguintes, para voltar a usar sempre o boné cinzento, de casimira, muito londrino. E acho que até lamentei não haver fog no Recife...
Foi quando ouvimos, lá fora, umas pipocadas estranhas, e a multidão, espavorida, invadiu o cinema, a gritar que havia rebentado outra revolução. Já estava eu mais ou menos acostumado àquilo. Desde 1930, era a mesma coisa, quase todos os anos. Apesar disso, tratei de fugir, investindo contra a volumosa massa de apavorados, em direção à porta. A massa me arrancou o boné, rasgou meu paletó, mas não venceu meu medo. Consegui passar. Da Praça Joaquim Nabuco, emendei uma corrida só, ganhando, lá adiante, a Ponte Princesa Isabel, a avenida do mesmo nome, o Jardim 13 de Maio, Arquimedes de Oliveira, cemitério. Pulei para uma sepultura mais elevada, agarrei-me às asas da estátua de um anjo, galguei o muro, cheguei ao Beco das Almas. Na debandada louca, fui por cima de muitos soldados que se refestelavam em trincheiras, aprontando-se para defender as esquinas recifenses contra o olho de Moscou. E acabei sendo o único da família ferido na revolução, porque, em dado momento, tropecei num fuzil-metralhador Hotchkiss, caí, e me arranhei.
Fracassada a revolução, surgiu a ditadura de Getúlio Vargas. Os integralistas passaram a apoiar, com discursos e desfiles, os carrascos policiais que cometeram atrocidades maiores que as dos nazistas da Alemanha. Com ou sem culpa, pessoas ilustres foram presas pelos sicários de Filinto Strubling Müller, seviciadas e atiradas em calabouços infectos.
Homens de ciência, das letras, das artes, caíram em mãos dos tiras-assassinos chefiados, no Recife, por Emílio Romano. Para qualquer um ir bater na Casa da Detenção (transformada em Presídio Especial) ou na Ilha de Fernando de Noronha, bastava simples denúncia de desafeto. Pouco depois, o Comandante da Região tomou o Governo, enquanto o Governador eleito pelo povo foi mandado às favas. Na prisão, o hino oficial da alvorada era o maracatu É de Tororó, de Capiba e Ascenso Ferreira. O maior psiquiatra da terra cuspiu na cara do capitão Chefe de Polícia, de dentro da cela, através das grades. E a maioria dos bárbaros vive por aí, impune e fagueira, mandando sempre, e cada vez mais, na política.
Uma coisa, porém, me deixa indignado, e minha revolta aumenta todas as vezes em que encontro Bandeira Duarte, o astro de Cidade Mulher: é que, em novembro vindouro, vai fazer 28 anos de tudo que me aconteceu, naquele domingo, do Moderno ao Beco das Almas, inclusive o tropeção no Hotchkiss que me causou escoriações generalizadas.
E até hoje não sei de meu boné cinzento, de casimira, que era a última moda em Londres. ([1])

(in Telhado de Vidro, volume I; Editora Bradil, Rio de Janeiro, 1967. 
Originalmente publicada no Diário de Notícias)



[1] Nota do autor.
Esta crônica saiu publicada no dia 28 de abril de 1963. No dia imediato, fui convidado a comparecer ao Serviço Nacional do Cinema. Bandeira Duarte, que faleceu pouco depois, e Humberto Mauro prestaram-me significativa homenagem, com discursos. E me devolveram boné exatamente igual ao que havia sido perdido, fazia 28 anos. Guardo o boné com o mesmo carinho com que guardaria um troféu de herói, ganho na revolução que me feriu... – N. de H.


segunda-feira, 28 de março de 2016

“GAÚCHO”

Não me lembro bem para que jornal trabalhava. Tinha saído, havia pouco, das calças curtas. Havia pouco, também, que deixara de ser aprendiz de suplente de revisor, com as seguidas promoções para suplente, revisor, e, então, repórter. “Diário da Manhã”? “Jornal Pequeno”? “A Cidade”? Lembro-me, não.
Um navio, no cais, conduzia de volta à Capital, o presidente da República. Era, na época, Getúlio Vargas. Deram-me a incumbência de ir a bordo, ouvir s. exa., ficar por perto, registrar os nomes de pessoas ilustres que se aproximassem do chefe da Nação, enfim, fazer a cobertura jornalística da passagem do presidente pelo Recife.
Fiz o que me mandaram. Sempre fui bem mandado.
Getúlio Vargas, no tombadilho, charuto, amigos, risos, pedidos, multidão no cais a saudá-lo. Eu, reporterzinho, por perto, de papel e lápis à mão, anotando tudo. De quando em vez, o espocar, o relâmpago e o fumaceiro do magnésio das antigas máquinas fotográficas.
A certa altura, o presidente divisou, lá em terra, no meio da multidão, com seu enorme chapéu, o Ascenso Ferreira, nosso querido poeta de Palmares. Devo informar não ser isto tarefa difícil. Ascenso é de muitas arrobas, volumosíssimo, figura de grande calado, desloca excesso de arráteis. Estando no meio da multidão, esta lhe bate pouco acima da cintura.
E Getúlio:
- Aquele não é o poeta?
- Sim, informaram. É o Ascenso.
- O autor do poema “Gaúcho”?
- Ele mesmo.
O presidente riu e determinou:
- Mandem chamá-lo até aqui.
Correram os mensageiros. Ascenso veio. Subiu as escadas de bordo. Cumprimentou o chefe do Governo. Aceitou o convite para sentar-se a seu lado. E Getúlio:
- Poeta, o senhor sabe de cor o seu poema “Gaúcho”?
- Sim, excelência.
- Pode declamá-lo?
Ascenso não se fez de rogado. E foi assim que ouvi, pela primeira vez, declamado pelo próprio autor, o poema “Gaúcho”:
“Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Saí de meus pagos em louca arrancada!
- Para quê?
- Pra nada!”
Ascenso Ferreira

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 de abril de 1964)

terça-feira, 22 de março de 2016

REVOLUÇÃO

Nos agitados dias de outubro de 1930, o sargento municiou os fuzis do Tiro de Guerra e entregou a seus comandados. João Olímpio abriu a loja e distribuiu uma peça de pano vermelho, para o pessoal patriota amarrar no pescoço, e aproveitar as tiras como enfeite no cano de cada arma. As espingardas de madeira, do ginásio, também foram distribuídas aos voluntários como tática militar – isto é: para fazer número e apavorar o inimigo. Mestre Amadeu, da Banda 15 de Novembro, emprestou dois pistons, o bombo, a caixa e o taró (pois é assim que chamamos o tarol), e foi montada a banda marcial.
Os guerreiros desfilaram sob os aplausos da população, pela Rua do Comércio, e, depois, o sargento pediu ao povo que se recolhesse e às lojas que cerrassem as portas, porque iria tomar a delegacia. Mas todo mundo quis ver a batalha e ninguém atendeu a sua intimação...
Foram ocupados os pontos estratégicos da cidade: a torre da Matriz, a estátua do Anjo, no Pátio dos Currais, o Alto do Galucho e o Trepa-Bode (passagem de pedestres sobre a estrada de ferro). O sargento agarrou um voluntário para levar seu ultimato ao delegado:
- A delegacia ou a vida.
O emissário amarrou lenço branco num cabo de vassoura e seguiu para o Barateiro, acompanhado por verdadeira multidão de curiosos que desejavam saber qual a reação da autoridade. Na delegacia, a sentinela-avançada viu o atirador com o lenço e avisou:
- Seu cabo, essa história de invadir o xadrez é boato. Um guerreiro do sargento vem aí com o lenço branco.
O cabo verificou a veracidade da informação, avisou o delegado, e, em poucos minutos, todo o destacamento correu em direção ao emissário, desarmado, a gritar vivas à revolução.
Então, Amadeu convocou a banda e houve novo desfile, dessa vez com os praças da Brigada também usando panos vermelhos, porque estes simbolizavam o movimento liberal.
Quando a parada chegou à estação, o comandante fez discurso, informando que não ia parar a luta, apesar da adesão dos irmãos “brigadeiros” (os soldados da Brigada). Mas, não havia propriamente, contra quem brigar. E, diante disso, alguém lembrou que a Prefeitura devia ser tomada.
Seguiu a tropa em formação de combate, para a Prefeitura, com o pessoal atrás, querendo ver a batalha. Cercando o prédio, novo ultimato. Bateram à porta, ninguém respondeu. O comando já ia determinar o arrombamento, quando o prefeito surgiu por trás dos guerreiros, com o lenço vermelho ao pescoço, saindo do meio da multidão e perguntando se os meninos não tinham mais o que fazer...
Houve certo mal-estar, não resta dúvida. Um exaltado ainda insistiu:
- É preciso limpar a Prefeitura.
Mas o chefe da Municipalidade rebateu à altura:
- Zé das Cebolas já limpou o prédio hoje. É ele quem faz a faxina. Ganha um cruzado por dia e pago do meu bolso, porque não há verba para no orçamento municipal.
De qualquer maneira, a alegria foi geral. A guerra estava ganha. O povo carregou os combatentes. No Campo da Bica, realizou-se festiva partida de futebol entre o pessoal do Tiro e o pessoal do ginásio. Ganhou o primeiro, por dois a um, com os tentos marcados pelo sargento. À tarde, Amadeu botou a banda para tocar valsas vienenses e brasileiras, assim como alguns tangos, e isso acabou em retreta na Praça do Leão Coroado. À noite, o Esporte Clube fez baile, até o dia seguinte, durante o qual as senhoras da sociedade entregaram uma medalha de Santa Terezinha do Menino Jesus ao sargento.
Era eu um menino que ia completar nove anos. Lembro-me, porém, de tudo. Foram horas gloriosas. E, nestes dias agitados, durante os quais tanto se falou em revolução, recordo-me daqueles instantes de emoção por mim presenciados, na Terra das Tabocas.
Porque, quando Juarez ganhou a briga no Recife, Vitória de Santo Antão já estava até mandando desamarrar os voluntários...


(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de abril de 1964)