sexta-feira, 8 de abril de 2016

MORREU CHICÃO

Às vezes, mendigo. Outras vezes, delinqüentezinho. Vivia pelo Aterro da Glória. Tinha casa de campo no Parque Laje. Quando as coisas estavam mais difíceis, colhia papéis velhos para vender a peso, ou reunia plantas silvestres, para comerciar nas feiras-livres, anunciando que eram da flora medicinal. E muita gente acreditava que suas ervas quebravam pedras nos rins, curavam reumatismo, consertavam intestinos ou facilitavam a digestão...
Num dia qualquer daquele abril, no Aterro da Glória, Chicão encontrou algo que lhe pareceu conter valores: embrulho bem feito, de bom tamanho, atirado ao chão. Olhou para os lados: ninguém. Apanhou o embrulho. Afastou-se, a passos rápidos. Em outro local, abriu o “tesouro”: eram livros, novinhos em folha, certamente esquecidos por algum turista...
Chicão ficou feliz! Tirara a sorte grande! Nem um o no bolso, e, de repente, aquela “fortuna”! Dinheiro em caixa!
Numa rua de grande movimento, arrumou os livros no canto da calçada e se pôs a vendê-los, como qualquer camelô, embora não soubesse ler, ao menos, os títulos, para apregoá-los de modo mais comercial...
Passou, porém, a turma do DOPS. Para azar do Chicão, um dos policiais sabia ler. Viu obras de Marx, Engels, Lênin, Dobroliubov, Chernischévisque, Franco e outros. Algum apavorado, logo após a revolução, embrulhara os livros suspeitos, e, temendo a polícia, abandonara o pacote no Aterro da Glória.
O subversivo Chicão foi atirado no tintureiro, cercado de metralhadoras, trancafiado no xadrez, levado para a Ilha das Flores, acabou no presídio. Mas passou a sentir-se o homem mais feliz do mundo. Na prisão, tinha casa e comida. Não precisava de pedir nem de delinqüir. Os demais detidos se organizaram em “coletivo”. O que era de um era de todos. Chicão recebeu roupas, cigarros e até doces às sobremesas. Além de tudo, 200 cruzeiros por dia, dos companheiros, para fazer a faxina da cela.
Quando lhe perguntavam qual a melhor coisa desta vida, respondia sem vacilar:
– É ser preso político. E acrescentava:
– Quando houver outra revolução, vou vender livros novamente, mas na Rua da Relação, bem à porta da Polícia Central...
Contei a história de Chicão e fiz apelo ao Marechal Taurino de Resende Neto, para que não o libertasse. O então presidente da Comissão Geral de Investigações anunciara que iria soltar todos os presos sem culpa, guardados havia mais de 50 dias. Ainda por cima, pretendia processar as autoridades policiais que não obedecessem à sua determinação. Diante disso, também solicitei ao Marechal investigador que perdoasse o delegado Cecyl Borer, para que Chicão não voltasse à vida ingrata do Aterro da Glória ou do Parque Laje, porque, na prisão, ele estava mais feliz do que o delegado Borer aqui fora...
O Marechal não me atendeu. Cometeu a polícia mais uma atrocidade: soltou o Chicão, em julho de 64, no frio, num dia chuvoso. Pouco depois, ele foi encontrado morto, num recanto do Parque Laje, sua casa de campo. Dormindo, levara três tiros. Vestia pijama de flanela, doado pelos companheiros da prisão, e tinha no bolso 400 cruzeiros, resto do lucro obtido no trabalho de faxina.
A 15ª DD quis saber quem matou Chicão. Nada descobriu. Nem seu nome completo foi apurado. O cadáver, no necrotério, recebeu apenas um registro: Francisco de tal. As pessoas que o conheceram informaram que ele não possuía inimigos. Ninguém viu o crime. A polícia achou que um grupo de malfeitores atirara no Chicão, de farra.
E muitos leitores me telefonaram, dando pêsames.


(in Telhado de Vidro, volume I; Editora Bradil, Rio de Janeiro, 1967.
Originalmente publicada no Diário de Notícias)