Às vezes, mendigo. Outras vezes,
delinqüentezinho. Vivia pelo Aterro da Glória. Tinha casa de campo no Parque
Laje. Quando as coisas estavam mais difíceis, colhia papéis velhos para vender
a peso, ou reunia plantas silvestres, para comerciar nas feiras-livres,
anunciando que eram da flora medicinal. E muita gente acreditava que suas ervas
quebravam pedras nos rins, curavam reumatismo, consertavam intestinos ou
facilitavam a digestão...
Num dia qualquer daquele abril, no
Aterro da Glória, Chicão encontrou algo que lhe pareceu conter valores:
embrulho bem feito, de bom tamanho, atirado ao chão. Olhou para os lados:
ninguém. Apanhou o embrulho. Afastou-se, a passos rápidos. Em outro local,
abriu o “tesouro”: eram livros, novinhos em folha, certamente esquecidos por
algum turista...
Chicão ficou feliz! Tirara a
sorte grande! Nem um o no bolso, e, de repente, aquela “fortuna”! Dinheiro em
caixa!
Numa rua de grande movimento,
arrumou os livros no canto da calçada e se pôs a vendê-los, como qualquer
camelô, embora não soubesse ler, ao menos, os títulos, para apregoá-los de modo
mais comercial...
Passou, porém, a turma do DOPS.
Para azar do Chicão, um dos policiais sabia ler. Viu obras de Marx, Engels,
Lênin, Dobroliubov, Chernischévisque, Franco e outros. Algum apavorado, logo
após a revolução, embrulhara os livros suspeitos, e, temendo a polícia,
abandonara o pacote no Aterro da Glória.
O subversivo Chicão foi atirado
no tintureiro, cercado de metralhadoras, trancafiado no xadrez, levado para a
Ilha das Flores, acabou no presídio. Mas passou a sentir-se o homem mais feliz
do mundo. Na prisão, tinha casa e comida. Não precisava de pedir nem de
delinqüir. Os demais detidos se organizaram em “coletivo”. O que era de um era
de todos. Chicão recebeu roupas, cigarros e até doces às sobremesas. Além de
tudo, 200 cruzeiros por dia, dos companheiros, para fazer a faxina da cela.
Quando lhe perguntavam qual a
melhor coisa desta vida, respondia sem vacilar:
– É ser preso político. E
acrescentava:
– Quando houver outra revolução,
vou vender livros novamente, mas na Rua da Relação, bem à porta da Polícia
Central...
Contei a história de Chicão e fiz
apelo ao Marechal Taurino de Resende Neto, para que não o libertasse. O então
presidente da Comissão Geral de Investigações anunciara que iria soltar todos
os presos sem culpa, guardados havia mais de 50 dias. Ainda por cima, pretendia
processar as autoridades policiais que não obedecessem à sua determinação.
Diante disso, também solicitei ao Marechal investigador que perdoasse o
delegado Cecyl Borer, para que Chicão não voltasse à vida ingrata do Aterro da
Glória ou do Parque Laje, porque, na prisão, ele estava mais feliz do que o
delegado Borer aqui fora...
O Marechal não me atendeu.
Cometeu a polícia mais uma atrocidade: soltou o Chicão, em julho de 64, no
frio, num dia chuvoso. Pouco depois, ele foi encontrado morto, num recanto do
Parque Laje, sua casa de campo. Dormindo, levara três tiros. Vestia pijama de
flanela, doado pelos companheiros da prisão, e tinha no bolso 400 cruzeiros,
resto do lucro obtido no trabalho de faxina.
A 15ª DD quis saber quem matou
Chicão. Nada descobriu. Nem seu nome completo foi apurado. O cadáver, no
necrotério, recebeu apenas um registro: Francisco de tal. As pessoas que o
conheceram informaram que ele não possuía inimigos. Ninguém viu o crime. A
polícia achou que um grupo de malfeitores atirara no Chicão, de farra.
E muitos leitores me telefonaram,
dando pêsames.
(in Telhado de
Vidro, volume I; Editora Bradil, Rio de Janeiro, 1967.
Originalmente
publicada no Diário de Notícias)