domingo, 9 de outubro de 2016

RAUL BEIJOU MARIA

Jamais li folhetins, ouvi novelas pelo rádio ou as acompanhei pela televisão. Meu tempo é curto para isso. Mas não sou contra as novelas. Tanto que, épocas passadas, as escrevi (Ah, estômago necessitado, a quanto me levaste!)
Trabalhando em determinada agência de propaganda, eu J. Rui começamos traduzindo a “Filha Adotiva”, para a Rádio Nacional, por volta de 1946. Eram 350 capítulos, se me não falha a memória, transmitidos, de segunda a sábado, em etapas de 15 minutos de duração. J. Rui fazia uma temporada, e, depois, passava-me a coisa. Quando eu me cansava, procedia da mesma forma. Com o tempo, perdemo-nos do original inglês. O enredo ficou por nossa conta. Na hora do revezamento, Rui, para evitar que eu lesse tudo o que andou fazendo com os personagens, contava o que fez com eles. Eu prosseguia. E o resultado foi que a mocinha se casou duas vezes seguidas, porque o parceiro se esquecera de dizer que havia providenciado o casamento...
Na velha Cruzeiro do Sul, escrevi novela para Waldeck Magalhães, bom camarada que acabou covardemente assassinado por anormal perverso. Waldeck já possuía o título da estória, quando me chamou: era “Ventura Roubada”, escolhida pelo patrocinador.
– Por que esse nome? – perguntei ao anunciante.
– Porque minha esposa inventou e acha que dá excelente estória.
– Seja feita a vossa vontade, respondi e... mandei brasa.
Os artistas ganhavam cachês, com exceção do Waldeck, o galã, o único que era contratado pela D-2. Ivo Peçanha, diretor da emissora, me disse:
– Temos verba mensal, para os cachês. Quanto mais você economizar artistas, mais perceberá, porque o saldo será seu.
Ao fim do primeiro mês, tínhamos gastos 975 cruzeiros. Ivo confessou:
– A verba é de mil cruzeiros. Você não economizou e vai ganhar apenas 25 cruzeiros.
Protestei:
– 25 cruzeiros por doze capítulos?
– Não posso fazer nada.
Jurei vingar-me da direção da emissora. Meti os personagens num bote e fiz o bote afundar. Morreu todo mundo afogado...
Salvou-se, apenas, Zélia Guimarães, a mocinha. E o primeiro capítulo do mês seguinte foi diálogo de dois, entre Zélia e Waldeck, porque este, como não recebia cachê, deixou de embarcar na canoa que afundou...
Waldeck protestou:
– Assim não é possível!
O segundo capítulo foi pior: ele sozinho. Zélia, sua noiva, tinha viajado. Como Pedro Bloch criara, havia pouco, o “Teatro Monovox”, na Rádio Ipanema, ora com Rodolfo Maier, ora com Amélia de Oliveira (teatro do qual saíram suas peças de um só personagem, como “As Mãos de Eurídice”, “Morre um Gato na China”, etc.), imitei-o num capítulo de “Ventura Roubada”. E Waldeck tornou a reclamar:
– Temos de dar jeito nisso. Como vai ser o próximo capítulo?
– Você não entra.
– De que forma, então, sairá?
– Somente o narrador e ruídos.
Assim prometi e assim fiz. A direção da emissora, apavorada, aumentou a verba, para que eu usasse mais alguns personagens. A novela, porém, chegou ao final apenas com Waldeck e Zélia, e – pasmem, senhores! – foi muito elogiada, inclusive pela esposa do patrocinador, autora do título...
Não sou contra as novelas. Elas voltaram a obter êxito. São a mania em voga, oferecendo os maiores índices de assistência da televisão. E foi sensação na cidade, saindo até nas manchetes, a informação que uma conhecida me deu, outro dia, de manhã, e que muito me espantou:
– Até que enfim, seu Iolando, Raul beijou Maria[1].
E eu:
– Graças a Deus, minha senhora. Graças a Deus!...

(in Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 01 de agosto de 1945)

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1964)


[1] Raul (Hélio Souto) e Maria (Rosamaria Murtinho) eram personagens principais da telenovela “A Moça Que Veio de Longe”, produzida pela extinta TV Excelsior, às 19h00, no período de maio a julho de 1964, escrita por Ivani Ribeiro e dirigida por Dionísio Azevedo, baseada no original do argentino Abel Santa Cruz.

Hélio Souto e Rosamaria Murtinho

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

À BEÇA

Um jornal do Rio publicou, não há muito, na manchete, a locução adverbial "à beça", com cê-cedilha, como manda o figurino. O diretor foi à redação, reclamar do redator-chefe:
—  O senhor viu a manchete?
—  Vi.
—  Quem é o responsável?
O redator-chefe chamou o editor:
—  O senhor viu?
—  Vi.
—  Quem é o responsável?
O editor chamou o secretário:
—  Viu?
—  Vi.
—  Quem é?
O secretário chamou o chefe do "copy-desk":
—  Viu?
—  Vi.
—  Quem?
O chefe do "copy-desk" chamou um sofredor de sua seção:
—  Quem?
O reescrevedor chamou o repórter:
—  Passei a notícia pelo telefone.
      Assim, voltou, do reescrevedor para o chefe do "copy-desk", deste para o secretário, para o editor, para o redator-chefe e para o diretor, a informação de que ninguém na redação era responsável. Em consequência, chamaram o chefe da re¬visão.   E o diretor foi severo:
—  O senhor viu "beça", com cê-cedilha, na manchete?
—  Vi, sim, senhor. Vi em cima da hora. Se não chego a tempo, saía com dois esses.. .
      O diretor perdeu o rebolado. Esperava tudo, menos aquela informação de que os dois esses esta-riam errados. Mas não perdeu a dignidade de diretor:
—  Espero que isso não se repita.
—  Isso o quê?
—  O senhor ser forçado a trocar letras em cima da hora.
—  Sim, senhor.
      Afastou-se o diretor, pisando forte. O chefe da revisão voltou ofendido e bradou, zangado, para os subalternos:
—  Por causa de "bessa" com "ss", o diretor me espinafrou à beça. Espero que isso não se repita.


(in A Ignorância ao Alcance de Todos; Editora Letras e Artes, Rio de Janeiro, 
1ª edição em 1963, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª em 1964 e 6ª edição em 1965.)