Há dois tipos de maridos: o
dos que nasceram para a função e os que a exercem por dever, sem a menor
vocação doméstica. Os deste tipo não sabem fazer compras para o lar, ignoram
todos os preços de gêneros de primeira necessidade, deixam o banheiro molhado,
pagam qualquer conserto na casa, jamais empurraram um carrinho de bebê.
O outro tipo, porém, é o
ideal. Marido por vocação, por índole, que trouxe do berço o amor à toca e às
prendas domésticas, deve merecer a preferência das moçoilas casadouras.
Cabe-lhe a carapuça de príncipe encantado. É o marido mesmo.
Leva a patroa, aos sábados, ao
cinema, para um filme de amor. Vai à feira, carrega bolsas de compras, escolhe
os melhores tomates, discute sobre a carne-seca, xinga o vendedor de frutas.
Trata das plantas, cria passarinhos, dá banho nos cachorros. Nos dias de
faxina, veste um calção, limpa as vidraças, encera o assoalho, lava banheiro e
cozinha. Pela manhã, faz o café. Durante a noite, muda as fraldas do caçula e
verifica se os mais velhos estão cobertos. Aos domingos, mete-se na cozinha e
faz a peixada, a feijoada, o cozido, e é especialista em saladas e batidas.
Quando o filho pede um carrinho, ele não compra; vai para os fundos do quintal,
desmancha um caixão e faz o carrinho. Pinta a casa, conserta as dobradiças das
portas, enverniza os móveis, fabrica os armários embutidos, levanta muros, cola
os ladrilhos, recompõe as vidraças, varre o quintal, arma a antena de
televisão, substitui telhas quebradas, contrata empregada, corta as unhas dos
meninos, aplica injeções, muda lâmpadas, prega as cortinas, verifica os
vazamentos das pias, desentope os esgotos, dedetiza os ralos, funciona como o
presidente da Sociedade dos Amigos do Bairro e como diretor social do clube, no
qual exerce um mundo de atividades, inclusive o de treinador do quadro de
futebol.
Este tipo de marido, muito
comum em todos os pontos da cidade, quase sempre é amanuense, e, como tal,
conhece os códigos de vencimentos e vantagens, sabe de cor os direitos e
atrasados a receber, discute, como ninguém, assuntos ligados a essas questões,
usando a terminologia específica: reajustamento, adicionais, enquadramento,
paridade, níveis, abonos, salário-família, aposentadoria, móvel. Somando tudo isso,
ganha bem (ele acha que sempre ganha mal), tem casa própria, sabe como adquirir
tudo mais barato e melhor, faz economias excepcionais, mas não enriquece. Quem
enriquece é o outro tipo de marido, o que não sabe coisa alguma, jamais fez
compras, ignora todos os preços, deixa o banheiro molhado, paga qualquer
conserto na casa e jamais empurrou o carrinho do bebê, porque passa os dias na
rua, ganhando dinheiro...
Enfim, conto pequenino
episódio, apenas para que o leitor avalie a que extremos vai a habilidade do
marido por vocação. Domingo último, um me disse:
- A válvula do banheiro estava
vazando. Minha mulher chamou o bombeiro e este cobrou dois mil cruzeiros pelo
reparo. Protestei. Mandei que fosse embora, porque, no domingo, eu consertaria
a válvula.
Sorriu feliz e continuou:
- Hoje cedo, foi a primeira
coisa que fiz. Abri a válvula e verifiquei que, apenas, a mola estava fraca.
Sabe como resolvi a situação?
- Vou saber agora.
- Coloquei uma prata de
cruzeiro lá dentro, calçando a mola, e a válvula passou a funcionar
maravilhosamente.
Depois do ar de vitória:
- Não pagando os dois mil ao
bombeiro, economizei mil novecentos e noventa e nove cruzeiros.
E me admirei de um detalhe
importante: onde teria aquele marido conseguido, a esta altura dos
acontecimentos, uma prata de cruzeiro, objeto tão raro nos nossos dias?!...
(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1964)