Fui criança feliz. Tive quintal. A mangueira mais alta era meu
avião. Eu o pilotava entusiasmado, e com a maior facilidade, saía do Recife e
chegava a Caracas. Por que Caracas? Não me lembro mais da razão de ir sempre
àquele Estado (eu, achava que Caracas era um Estado). De lá, corria países diversos: Lisboa, França, Portugal, o Havre (Lisboa era país, e o Havre era
terra de minha madrinha).
Tive as praias do Pina e de Olinda, para correr, jogar bola,
pescar sobre as pedras, até para tomar banho salgado. Velejei em muita jangada
de alto, peguei mar brabo, fui às paredes, fiz pescarias de dormida, de covo,
de cerrador – já crescido, comprei uma jangada para mim, novinha em folha, com
o Popey no alto da vela, para que as meninas a identificassem ao longe...
Nada me comove mais, por tudo isso, que ver a infância do Rio. De
modo geral, ela se divide em dois grupos: o dos menores abandonados, sem lar ou
vivendo em barracos de morros, de qualquer forma em aprendizado constante de
crimes de toda espécie e, já revoltados diante da injustiça social; e o dos
engaiolados, seqüestrados pela própria vida nos apartamentos. Ambos os grupos
são vítimas de uma cidade ingrata, sofrida, sacrificada; ambos são a infância
sem direito à infância.
Menino de apartamento, mesmo quando mora perto da praia, onde
brinca? Se vai para a areia, sofre um mundo de restrições. A bola é proibida O
mar é perigoso. Pouco tem para onde correr, entre barracas e biquínis ao sol.
Na rua, o trânsito intenso e lotações atropelando, até sobre os passeios. Na
calçada, o porteiro reclama a bola, a bicicleta, as corridas ou o barulho. Nos
corredores do edifício, os demais vizinhos protestam contra a algazarra. Dentro
de casa, a mamãe, sempre a mamãe:
– Não me suje a sala.
– Não me desarrume o quarto.
– Não me estrague as almofadas.
– Não corra no encerado.
Tranca-se o menino, isolado, em vida sedentária, à sombra, sem ar,
no ambiente impróprio para a sua idade. Vê televisão, com a. qual mais se
corrompe, e não, anda descalço, porque não há água para lavar os pés. E quando
se tranca, para brincar silencioso, cativo, fazendo por onde não sofrer
repreensões, a mamãe, sempre a mamãe, desconfia de seu silêncio e chama a
empregada:
– Maria, vá ver o que os meninos estão fazendo e diga a eles para
não fazerem isso.
Fui criança feliz, tive quintal, praia, jangada veleira, nadei,
pesquei, fui à Caracas pilotando a mangueira. Devo a isso o fato de só ter
adoecido quarenta anos depois, de uma Senhora Margarida no duodeno. E me comovo
ao ver a infância infeliz do Rio, abandonada ou presa demais, com excesso de
liberdade ou sem nenhuma, esquecida sempre – ou, quando muito, brincando uma
vez por ano, nas ruas de recreio, para ajudar as promoções de um vespertino.
Senhores, a infância é nosso maior problema, é o primeiro ponto
nacional para uma reforma de base!