quinta-feira, 25 de novembro de 2021

NO TEMPO DO BARATO

NÃO SOU saudosista. Já disse muitas vezes que odeio a frase “Bom era antigamente”. Antigamente, não havia penicilina, avião de jato, televisão, excursões à Lua, minissaia, vacina Sabin, biquíni, rádio, geladeira, aparelho de ar-refrigerado. Mas não vou negar que havia boas coisas: o mata-mosquito, o bonde, a melindrosa, o maxixe, o carnaval de rua, a serenata, o chapéu (do qual nós, os carecas, sentimos tanta falta), o pince-nez que servia para identificar poetas, e, sobretudo, o Real.

Sim, eu sinto muita saudade, do Real, a antiga unidade monetária brasileira, sob o signo do qual fui criado, raciocinando em termos de Mil-Réis. O Real foi contemporâneo da velha ortografia que começou a ser modificada até a reforma de 1943, um ano depois da instituição do Cruzeiro. Equivalia o Mil-Réis, à quarta parte da oitava de ouro de 32 quilates: 0,8965 gramas. E a moeda de vinte mil réis, que a gente escrevia 20$000, era a mais importante, porque representava cinco oitavas de ouro, ou 17,920 gramas.

Lembro-me do dólar custando dois mil réis e do cafezinho a um tostão. Em toda a minha vida, joguei uma só vez no bicho. Eu ainda estava no gymnásio. Morava na Rua do Lima, no Recife. Na venda da esquina arrisquei dois tostões no grupo 5, do cachorro. A tarde, fui receber meus 2 mil e 200. Pude ir ao cabaré Tupinambá e tomar cervejas ao som da orquestra dirigida pelo maestro Guio Morais...

O maço de cigarros Yolanda-500 custava uma prata de 10 tostões, isto é, um mil réis. Quando esta importância passou a um cruzeiro, já o Yolanda estava mais caro. Mas a gente ia à venda e pedia.

– Me dá um tostão de Yolanda.

O vendeiro abria o maço e embrulhava dois cigarros...

Quem não tinha dinheiro para comprar mais que isso também não podia pagar cem réis (um tostão ou dez centavos velhos) pela caixa de fósforos, apelava para as brasas dos fogões de barro. Havia sempre alguém fumando, nas ruas. E era comum qualquer pessoa pedir:

– Pode emprestar-me o fogo?

– Pois não.

O fato de encostar um cigarro no outro, em plena via pública, representava gesto de camaradagem, de solidariedade permanente entre desconhecidos. Depois de atendido, o que acendia o cigarro agradecia, sensibilizado, entre fumaças, o gesto de companheirismo que acabara de receber. E, em vez do “obrigado, meu chapa” ou do “oquei, compincha”, dizia:

– Muito agradecido, distinto.

– Não tem de quê, meu amigo, ora essa! Precisando, disponha.

Quem nunca ouviu talar no Real, porque nasceu no Cruzeiro, não acredita que se almoçava nos chinas por um cruzado (400 réis ou 40 centavos antigos). Não há cidadão, de 27 anos de idade, que imagine este Iolando, na sua idade, ganhando já o excepcional salário de cinco mil cruzeiros numa rádio e com a renda geral, contando com o jornal e direitos autorais diversos, de dez a doze mil cruzeiros. Então, o Iolando veio morar em Copacabana e comprou seu automóvel do ano, embora a prestações. O carro lhe custou a fortuna de 60 mil cruzeiros...

Qualquer economista contesta, somando e multiplicando, essa espécie de saudosismo. Demonstra que a renda per capita era menor, o dinheiro menos valorizado, os salários proporcionalmente mais baixos. Enrola e prova. Mas continuo não podendo ouvir falar no Real, porque ele me lembra o tempo do barato. O chamado tempo bom. Basta dizer que comprei muita mão-de-milho por um cruzado. E ganhava 200 mil réis por mês.

É fácil de ver quanto custam 50 espigas de milho para saber se o preço de hoje é proporcional ao meu salário...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1969)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AS ELEIÇÕES DA ACADEMIA

Sem favor algum, Adonias Filho é dos bons escritores brasileiros. Se o elegesse normalmente, a Academia Brasileira de Letras estaria recebendo literato dos mais legítimos, dono de bagagem, não volumosa, mais fartamente louvada pela crítica. Não merecia Adonias Filho, por conseguinte, o achincalhe acadêmico de haver sido rejeitado quando não tinha posição política, e, agora, porque é diretor da Agência Nacional e da Biblioteca Nacional, e porque tem influência nas hostes governamentais, ser eleito em detrimento da própria obra.

A bem da verdade, ressalve-se o procedimento do romancista. Ele não teve a menor culpa em sua espantosa eleição. Não pensou em vencer a admirável estrutura moral e intelectual de Antenor Nascentes, com chincanas e coações. Pelo contrário, fui até informado, em palestra fraternal, pois lhe tenho estima e admiração, de que pensou em desistir, em sinal de respeito ao mestre Antenor Nascentes, mas seus bajuladores (não são amigos) não deixaram. Entre eles, aquele tristemente célebre que, ao prestar concurso para catedrático de literatura do Pedro II, conseguiu de um ex-governo todas as ajudas possíveis, e, mesmo assim, ficou em segundo lugar, tendo de ir lecionar no internato, contra a vontade, porque o primeiro colocado escolheu o externato...

Portanto, Adonias Filho foi mais humilhado, pela vitória que obteve, do que o mestre Antenor Nascentes, pela derrota. Merecia eleger-se com a própria obra, e, não pela situação política. E, se obteve alguns votos dignos, de três ou quatro que realmente leram os seus livros e o admiram, como Jorge Amado, ganhou de modo repulsivo o apoio viscoso e nauseante dos que lhe vão pedir favores e proteções, ou dos que já lhe devem obrigações...

Votaram no mestre Antenor Nascentes os seguintes acadêmicos: Álvaro Lins, Afonso Arinos de Melo Franco e Múcio Leão, por carta e, diretamente, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Austregésilo de Ataíde (presidente), Manuel Bandeira, Silva Melo e Barbosa Lima Sobrinho. Doze outros prometeram, festejaram o mestre, empenharam a palavra e, na hora, não resistiram ao clima de subserviência espontânea da maioria...

São, ao que me parece, oito acadêmicos os que têm mais de oitenta anos, inclusive Viriato Correia, o pequenininho que conheceu o Cavalo de Tróia quando ainda era potro. Alguns, pela idade, sofrendo de esclerose cerebral, votam sem noção do que estão fazendo. Um deles compareceu à sessão que elegeu Marques Rebelo, conversou e saiu, sem se lembrar das eleições...

Este mesmo, na quinta-feira passada, foi para São Paulo e, na sexta, veio para votar...

Um outro deu, por carta, o voto a Antenor Nascentes, fazendo-lhe os maiores elogios. No dia, esqueceu-se. Compareceu. Votou e saiu dizendo:

- A Academia tem obrigação de eleger Adonias Filho. Ele é professor emérito do Colégio Pedro II, é mestre de grande cultura e autor do dicionário da própria Academia. Vim aqui, tão-só, para votar nele.

Quando lhe disseram que havia trocado o nome de seu candidato, saiu a correr e foi ao presidente, para mudar o voto, mas já era tarde...

Essa instituição quer ser o estado-maior da cultura e quer ser dona do idioma, tendo neste último caso, apenas, um filólogo sentado em suas cadeiras: o prof. Aurélio Buarque de Hollanda.

A Academia que elegeu Getúlio Vargas, porque presidente da República, que fala em eleger o marechal Castelo Branco pelo mesmo motivo, já convidou também João Goulart (eis uma revelação). E o ex-presidente, que não era chegado a livros e, que se saiba, jamais leu, ao menos um manual de pecuária, embora seja entusiasta do assunto, não foi imortal porque não quis. Convites não lhe faltaram...

O Pequeno Trianon devia, porém, respeitar mais a obra de um escritor moço como Adonias Filho. Se a maioria dos acadêmicos o conhecesse, faria isso. Tê-lo-ia escolhido quando não desfrutava de posição política. Sobretudo, porque não faria com que ele passasse pelo irremediável vexame de participar, ainda que com instrumento involuntário, da maior mácula da história acadêmica: a de derrotar o autor do dicionário da Academia.

E, uma vez que, não tendo competência para elaborar um dicionário (pois, quando precisou de fazê-lo, teve de chamar alguém de fora) repudiou a própria obra, resta saber se ainda há algum resquício de pejo na entidade, para devolver a Antenor Nascentes seu próprio dicionário...

Antenor Nascentes

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1965)


sábado, 20 de novembro de 2021

ELEIÇÕES NA ACADEMIA

A Academia Brasileira de Letras vai realizar eleições, para preencher a vaga deixada por Álvaro Moreyra na cadeira que pertenceu a José do Patrocínio (fundador), Mário de Alencar e Olegário Mariano.

Concorre o mestre Antenor Nascentes.

Dizem os estatutos, em seu Art. 1º, que a entidade “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional.” Em primeiro lugar, a cultura da língua. No entanto, a Academia, no momento, conta, em seus quadros, tão-só, um filólogo: Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira.

Há movimento na Academia Brasileira de Filologia contra o fato de ser a Casa de Machado de Assis o órgão oficial do idioma. Acham os cultores da língua que se não justifica a soma de poderes enfeixados pelo Pequeno Trianon, com apenas um filólogo participando dos seus trabalhos. Tal movimento tende a vincar, e, conseguintemente, a desprestigiar a Academia de Letras.

Morrerá, todavia, no nascedouro, com a eleição do Mestre Antenor Nascentes. É ele, sem sombra de dúvida, dos mais respeitáveis filólogos brasileiros.

Como se não bastasse, fácil seria de verificar a contribuição cultural do Mestre à Academia Brasileira, e – já então em caráter oficial – ao País.

Autor de dezenas de trabalhos indispensáveis ao conhecimento da língua, Professor Emérito do Colégio Pedro II, dono de admirável formação clássica, Antenor Nascentes deu-nos o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, cujo terceiro tomo deverá sair ainda este ano, junto com a reedição dos dois primeiros. E chegaria obra de tamanha erudição e de tão definitiva importância, para classificá-lo como o candidato certo à Cadeira nº 21.

Mas não fiquemos por aí. Quando a Academia Brasileira de Letras necessitou realizar seu dicionário – o dicionário oficial do Brasil – convidou o Mestre Antenor Nascentes para elaborá-lo. É ele, por conseguinte, o autor do dicionário da Academia. E, agora, concorre pela primeira e última vez a uma eleição.

Não o elegendo, obviamente, a Academia de Letras estaria repudiando o próprio dicionário. Estaria como que deixando de legitimar um filho, para criá-lo espúrio.

E não acredito que isso aconteça.

Antenor Nascentes
(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1965)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

FINADOS

Anteontem, Finados, chuvoso, lágrimas do céu, do mundo, em mim, porque pétalas caíram pela estrada da vida: meu pai, minha mãe, meu avô Nestor, minha avó Matilde, meu avô Galhardo, Dindinha, Marta e Teixeira, Anne Marie Conrad, Sílvio Néri da Fonseca, Filgueira-Filho, Silvino Lopes, Austro Costa, Roberto Gantois, Roberto de Andrade, Luís Maranhão, José Roma, Tia Isabel, Tia Sinhazinha, Tio Miguel, Tio Xandu, Henrique, Agnaldo, Tia Mira, Mário de Holanda, Samuel Campelo, Padre Félix Barreto, Norton França, Paulo Lopes, Zezinho das Gravatas, Vivi General, Dagoberto Pires, Alexandre Plemont, Ulisses Pernambuco, Manuelzinho, Luís Santos, Marilu Ramalho, Mário Melo, Alberto Figueiredo, Eugênia e Álvaro Moreyra, Carlos Tovar, Olegário Mariano, Vitor Costa, Ismênia dos Santos, Restier Junior, Carlos Machado, Itália Fausto, Custódio Mesquita, Paulo Bruno, Luís Iglézias, Paulo Orlando, Armando Gonzaga, Miguel Santos, Graziela Ramalho, Mesquitinha, Dinarte Armando, Ismael Neto, Geraldo Pereira, Benedito Lacerda, Héber de Bôscoli, João Petra de Barros, Garôto, Ari Barroso, Lamartine Babo. Sílvio Silva, Luis Carneiro, Batista Teixeira, Amália de Souza, Comandante Fontoura, Armando Cavalcanti, Sargento Baracho, Sargento Jupi, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Carlos Pena Filho, Jorge de Lima, Rogério Pongetti, Nestor Moreira, Carlos Rubens, Mário de Andrade, Vassourinha, Luís Barbosa, Capitão Moeda, Francisco Carlos, Aníbal Fernandes, Antônio Ciribelli, Sargento Wolff, Artur Ramos, Roquete-Pinto, Pancetti, Catulo da Paixão Cearense, Joaquim Ribeiro, Otávio Tarquínio de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Portinari, Osório Borba, Villa-Lobos, Mário Eugênio Silva, Jorge Faraj, Germano Augusto, Freire Júnior, Estevão Cruz, General Rondon, Silvino Lira, Evaldo Rui, Olívio Montenegro, Francisco Alves, Luís Paulistano, Roberto Silveira, Carmem Miranda, General Portocarrero, Benjamim Cabello, João de Deus Falcão, Nelson Paixão, Silvestre Maia, Guevara, Anis Murad, Andrade Lima, Teixeira Pinto, Evangelina Lessa, João Matos, José Maia, Adelmar Tavares, Gustavo Barroso Ribeiro Couto, Brito Broca, Cláudio de Sousa, Luís Edmundo, De Sousa Júnior, Rafael de Holanda, Abadie Faria Rosa, Jardel Jercolis, Mário Sallaberry, Enéias Viany, Celestino Silveira, Dolores Duran, Teopompo Moreira, Oscar Brandão, Fernando Tude de Sousa, Joaquim Alves da Silva, Afra Mynssen, Henrique Tavares, Luís Vassalo, Dario de Almeida, Romeu Ghipsman, Edu, Ernani Fornari, Luciano Carneiro, Plácido Ferreira, Vina de Sousa, Mário Faccini, Armando Braga, Luís Americano, De Chocolat, Gustavo Martins, César de Barros Barreto, Darci Cazarré, Conchita de Morais, Seu Porto, Átila Morais, Humberto Porto, Antonio Maria, lágrimas em mim, Finados chuvoso, lágrimas do céu, do mundo, porque pétalas caíram pela estrada da vida.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1964)

Imagem capturada da Biblioteca Nacional Digital - Brasil