quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CARTA DE CHAMADA

Os anos se passaram, a vida mudou, acho que meu temperamento se modificou, porque andei pelo mundo, vi terras, vi povos, costumes vários, faz vinte e tantos anos que sou vegetante de cidade grande – ah, se ainda tivesse quem me mandasse carta de chamada:

 “Volte, Iolando.

Continuamos à sua espera.

Seu quarto, com a cama-de-vento, os tamancos, o capitão, o armário e o cortinado, e a rede do alpendre, tudo está, ainda, no mesmo lugar.

Rosalina ficou mais velha, é claro, mas suas mãos sempre milagrosas. Ouviu dizer que aí, onde você mora, não existe fogão de carvão. Soube também que vocês não usam panela de barro. Está admiradíssima! Não crê que seja possível alguém cozinhar uma feijoada, com tudo dentro, sem carvão e sem panela de barro.

Aproveitando esta, Rosalina manda perguntar que prato você quer que ela prepare, para o dia de sua chegada. São tantos os de que você gosta que ela nem sabe qual faça primeiro. Carne-de-sol com farofa de bolão? buchada? mocotó? cabidela? quibebe? pirão de macaxeira com carne-do-ceará? Mande dizer, Iolando, que deseja comer em primeiro lugar.

No dia seguinte, quando você acordar com o Príncipe cantando (seu galo, lembra-se?), terá à mesa os mesmos pratos de sempre: fruta-pão, cará, macaxeira, banana-comprida, batata-doce, cuscuz, tapioca, beiju, café torrado em casa, depois de batido no pilão, e leite da cabra Boneca.

Às oito horas, iremos todos à estação, ver chegar o trem, com os jornais e as novidades do Recife. Ficaremos na farmácia, ajudando o avô, até a hora do almoço. Depois, rede, Iolando, com o sono alimentado pela cachaça de cabeça, destilada em alambique de barro. Às 6 da tarde, iremos novamente à estação, receber o trem de São Caetano, com os caixeiros-viajantes de guarda-pó e as moças bonitas comprando água fria. Na volta, jantaremos.

À noite, poderemos ir ao Teatro Diogo Braga. Está fazendo temporada aqui um mágico fenomenal. É o grande sucesso do momento. Tem uns bonecos que falam e suspende a mulher no espaço, sem encostar o dedo nela. Não perco uma noite de função. Mal acabo de jantar, o Severino leva as cadeiras do corredor para o teatro.

Depois do espetáculo, iremos para o Trepa-Bode, fazer serenata. Seu pinho ainda está no mesmo lugar, em cima do guarda-vestido da avó. Ela o conserva com o maior cuidado, para a sua volta. Lembra-se daquela sua valsa, em lá menor, feita para a filha de seu Brito? Pois até hoje o pessoal canta. Dizia assim: ‘Só morrendo era um bem. Porque, ao sabê-la morta, uma certeza me conforta: não será mais de ninguém...’

Volte Iolando.

Continuamos à sua espera”.

 Esta é a carta de chamada que jamais receberei. Não há mais quem a escreva.

(Publicada, originalmente, na seção "Telhado de Vidro", no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em 30-31 de maio de 1965, e, com algumas modificações, no seu livro de crônicas selecionadas "Telhado de Vidro", volume I, editado pela BRADIL Rio de Janeiro, em 1967) 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

CRIANÇAS

        SEMPRE me chegam livros infantis. São estórias bonitinhas, ora do casamento da baratinha, ora do vovô que encontrou uma fada no pomar, ora, ainda, da tartaruguinha que deu conselhos à cobra, para não envenenar o porquinho e dizem os entendidos que veneno de cobra não mata porco...

Não sei se os meninos de hoje lêem essas estórias. Desconfio de que eles não sentem mais nada diante dos milagres obtidos pela varinha-de-condão das fadas louras e sorridentes que surgem nos momentos mais difíceis da vida da moça perseguida pela madrasta. Menino de hoje dificilmente faz a clássica pergunta do “Mamãe, como é que a gente nasce?”...

A televisão, que tanto deseduca juvenis e adultos, tem lá sua virtude de ensinar menino a falar mais cedo e de mostrar que o homem se prepara para ir à Lua. O pó de piripimpim, do grande Lobato, não deve causar o mesmo impacto num garoto que vê os astronautas em desfile nas telas de TV ou de cinema, nas páginas de revistas e de jornais. As Vinte Mil Léguas Submarinas nada mais significam para o pequeno que a todos os instantes assiste a filmes passados debaixo d’água, com aventuras de homens-rãs, de famosos mergulhadores que fazem porta-aviões explodir. E sinto até certo constrangimento de oferecer livros de Monteiro Lobato ou de Júlio Verne a qualquer afilhado...

Não há muito tempo, Alfredo Souto de Almeida, publicitário e homem de televisão, fez conferência sobre o assunto e informou que a primeira palavra dita pelo filhinho de um conhecido seu foi:

– Omo!...

Menino que começa a vida dizendo “Omo”[1], por força da televisão, vai dizer “helicóptero” (palavra que, no meu tempo, era difícil) alguns meses depois. Vai brincar de avião soltando bomba-atômica e de disco-voador trazendo marciano para tomar banho de mar em Cabo Frio. Depois de ver reportagens sobre a cura da raiva e sobre transplantes, e depois de tomar conhecimento de múmias, não se entusiasma com a bela adormecida do bosque. Pensa lá com seus botões: “– Ou os médicos não viram que ela está dormindo, ou ela é a filha de Cleópatra embalsamada”. Jamais acreditará no “príncipe encantado” fazendo proesas para despertar sua amada, numa época em que todo mundo luta judô e qualquer um daria bruta surra no valente. Demais, um pirralho mais esperto diz logo:

– Esse magnata é otário, às pampas. Não manja nerusca de neuribes, de mina. Se o bacanca desse as caras em Copa Beach veria boazudas muito mais legais e se esqueceria da que vive na lombra. Pra mim, essa tal de Bela Adormecida ‘tá de pissicata na fornalha ou de planta-do-diabo na cuca...

Em que pese qualquer exagero – se é que este existe – não tenho a menor dúvida de que a literatura infantil tem de ser reformulada. Pelo menos, atualizada. Não digo que a fada troque a vara-de-condão por uma lurdinha ou um cassetete tamanho-família, mas é bem possível que muito menino, a esta altura, prefira vê-la de biquíni, como a mamãe, ou, quando muito, de Saint-Tropez, como a vovó...

– “Ó têmpora! Ó mores!” – dizia sempre o Xandu, quando via a madrasta do próprio filho apenas de mangas curtas. E explicava: “– Bem disse Qüíqüero[2], a propósito de Catilina, quando profligou energicamente a cumplicidade moral que permitia se ousassem os maiores atentados.

E Xandu não conheceu a minissaia...



[1] N. do E. – Marca de sabão-em-pó.

[2] N. do E. – Segundo o autor, era a maneira de Xandu dizer “Cícero”.

 • Nestor de Holanda 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1968)

domingo, 10 de outubro de 2021

FILME INFANTIL

O assunto foge ao pequeno alcance de meus conhecimentos. Tenho cá comigo, todavia, uma dúvida: será conveniente teatro infantil representado por crianças?

Deixo a questão aos pedagogos.

Assisti, em alguns países mais desenvolvidos, no assunto educação, que o nosso, a alguns espetáculos para crianças. Os atores eram adultos.

Um professor me disse:

- O teatro de crianças cria nas espectadoras certa inveja, a qual pode transformar-se numa espécie de sentimento de inferioridade. Ao mesmo tempo em que a menina assistente gosta da beleza e da bondade da que interpretou, digamos, a Branca de Neve, pode julgar que não é tão boa nem tão bela quanto a outra...

Ainda perguntei:

- Não haveria a possibilidade da espectadora aceitar o exemplo, e, recebendo a lição da peça, procurar ser tão boa e tão bela quanto a outra?

- Dificilmente, esclareceu o professor. A prática tem demonstrado o contrário.

Não sei até que ponto isso é real. O assunto, já disse, foge ao pequeno alcance de meus conhecimentos. Por isso, a dúvida permanece. Temos educadores, pedagogos ilustres, que poderão dar a última palavra sobre essa questão...

De qualquer maneira, assisti, com entusiasmo, ao filme “O Parque”, realizado, por iniciativa própria, pela culta (embora jovem) professora Maria José Alvarez. E não posso negar: assisti a espetáculo extraordinário, admirável, encantador.

A Profª deu-me a honra de uma exibição especial de seu filmezinho de quinze minutos de duração. Carlos Alberto, o “China”, de 11 anos de idade, faz o papel principal do menino pobre que se põe a trabalhar, para conseguir dinheiro a fim de gozar as delícias de um parque de diversões. Engraxa sapatos, vende garrafas vazias, ajunta ferro velho, negocia até seu canário cantador, e, quando reúne o suficiente para pagar ao carrossel, à roda gigante etc., o parque de diversões já encerrou a temporada e foi desarmado...

É comovente. O roteiro foi escrito pela menina Graça Rangel, de 15 anos, aluna do segundo ginasial. Carlos Egberto, tem 17 anos. Claro que a orientação coube a adultos, porque há cortes excelentes; mesmo assim, foi um filme de crianças para crianças. Estas atuaram, inclusive, no laboratório. E, num caso como este, não creio que se aplique, de forma alguma, o ponto-de-vista do mestre que me falou sobre a Branca de Neve.

“O Parque” é educativo. Exibe aspecto construtivo de grande alcance, de beleza rara. O espectador mirim se compadece do menino pobre. Vive, na luta do “China”, o drama comum, bem brasileiro, de milhares de meninos pobres. Sente a indignidade social da divisão de castas. Aprende ida. Aprende amor. Honradez. Importância do trabalho como fator de vitória. E foi pena a vitória do “China”, pelo trabalho, não se tivesse concretizado...

Sem nenhum apoio, empregando verbas de sua própria economia, com sacrifício, idealismo, dedicação, a Profª Maria José Alvarez realizou algo admirável. É mestra na acepção do vocábulo.

E não duvido de que venha a sofrer perseguições movidas pela inveja das que não sabem fazer o mesmo...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1964)

sábado, 9 de outubro de 2021

OS ROUXINÓIS

       Se você estiver procurando apartamento para alugar, não mais pergunte se falta água, não tome conhecimento do preço do aluguel nem queira saber se a morada é clara ou escondida do sol. Pergunte, apenas:
        - Há alguma vizinha que seja soprano?
        Em caso negativo, pague qualquer aluguel. Deixe a água do Guandu faltar em abundância. Não se preocupe com a ausência de luz ou de ventilação. O sossego é tudo!
        Se acontecer resposta afirmativa, fuja. Para bem longe. Ponha em quarentena, uma área circunvizinha de, no mínimo, 50 mil metros quadrados, que é, pelos meus cálculos, o raio de alcance dos bramidos de soprano gordo. E vá ser inquilino em outra freguesia.
        Ouça a chamada voz da experiência: Se não seguir este conselho, você, amanhã,  estará no meu caso. Ouvirá, todas as manhãs, o enterro de uma melopéia. Depois que a “vaca leiteira” apitar o suficiente (isso em seus ouvidos) para chamar a freguesia; depois que o amolador também em seus ouvidos, soprar na gaita o alerta às tesouras cegas; depois que o garrafeiro abrir o grito para saber quem tem garrafas e jornais velhos - entrará em seu edifício uma pianista aposentada, transportando Franz Liszt ou Richard Wagner debaixo do sovado. Será a acompanhante do rouxinol vizinho. E suas oiças passarão a viver sob o massacre de gorjeios mal-assombrados, com perseguição da aposentada.
        Adeus bem-estar matinal!
        Cada trinado será provocação em dó sustenido maior, o maior de todos os dós.  Você sofrerá violentos agudos em 1.300 vibrações por segundo. A garganta dos sopranos, para perturbar ainda mais os vizinhos, tem precisão de aperfeiçoar-se, todas as manhãs, a fim de conseguir altura, timbre, duração e intensidade. Tudo isso é praticado, a um só tempo, em individuais monstruosos que, estouram em sua janela e entram pela casa, invadindo todos os cômodos.
        Esses animais volumosos são chamados de rouxinóis. Lá em Vitória de Santo Antão, meu porto de origem, rouxinol é corruíra, pássaro meigo, que canta e canta bonito. Aqui, como acabamos de descobrir, rouxinol é a senhora grossa na Linha do Equador, abarrotada de acidentes geográficos, que, ao sair de casa, põe na cabeça um chapeuzinho com uma pena indicando o norte magnético, a qual serve para se saber se a dona está de frente ou está de costas.
        Ainda outro dia, encontrei-me com a corruíra do edifício em que moro. Apertei o botão do elevador e ela veio dentro. Como se trata de um Otis, com capacidade máxima para dez passageiros, sob pena de multa, eu, que não queria pagar a multa por excesso de peso, perguntei se o elevador estava lotado. O rouxinol respondeu que não, balançando a cabeça e  a peninha de sua bússola de cocuruto. Mas estava. Eu vi que estava...
        Meu edifício tem 48 apartamentos, todos grandes. Juntando com os prédios que o circundam, são mais de dois mil apartamentos. Ninguém incomoda ninguém. Só um rouxinol, todas as manhãs, distribui intranqüilidades a domicílio, pela jurisdição...
        Por que o Governo não cede ilha da Guanabara, das mais isoladas, para servir de viveiro aos rouxinóis?!
        Depois de ler este conselho, até aqui, você pode considerar-se avisado. De hoje em diante, só cairá em terreno minado por sopranos, se quiser. Não poderá mais ser pegado à traição, como eu fui.
        Tanto que escrevo, neste momento, sob a tremenda tensão de ter de ouvir os mais formidáveis gargarejos que um homem pode sofrer. Basta dizer que minha vizinha faz individual, hoje, com a  “Granada” do Sr. Agostin Lara.
        E espero, a qualquer momento, que ela estoure, levando pelos ares dois mil apartamentos, o que destruirá grandes empreendimentos imobiliários....
 
   (In Ah! Saudade Engraçada!..., Livraria São José, 1962;
e também, in Telhado de Vidro, volume II, BRADIL, 1967)

 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

RECIFE

VELHO AMIGO vem visitar-me. Pede minhas impressões sobre o novo Recife. Digo-lhe que me sinto velho diante da cidade que me viu nascer. Bairros inteiramente reconstruídos, edifícios de mais de vinte andares, movimento intenso, largas avenidas, demolições constantes dos antigos pardieiros, pontes recentes, visível e assustadora explosão democrática.

– O Recife não cresceu, afirma. Inchou.

– Teria sido em conseqüência das enchentes?

– Decerto.

Caminho pelas ruas modificadas. Tento localizar pontos que me eram familiares. Relembro episódios. Há vinte e seis anos deixei a cidade de vez, mas apenas há quatro meus olhos não reencontram o Capibaribe.

Não conhecia a Ponte do Limoeiro nem a Avenida Norte. O Banco do Brasil e o Pronto Socorro ocupam majestosos edifícios. As avenidas Guararapes e Visconde da Boa Vista, ligadas pela Ponte Duarte Coelho, são a espinha dorsal do Recife. Perderam a expressão as ruas Nova e Imperatriz. Boa Viagem foi assassinada pela ganância imobiliária: não mais os coqueiros, as lindas residências. Ganhou prédios, apartamentos, comércio, quer ser Copacabana. Agora, quem desejar paisagens nordestinas à beira-mar terá de ir mais para o sul, para Piedade. Candeias. Gaibu.

O trânsito necessita, urgentemente, de um Fontenele. Excesso de veículos e, por conseguinte, disputa constante entre motoristas. Se qualquer pessoa levanta o braço, distraidamente, para coçar a cabeça, um carro de aluguel pára, pensando que foi chamado...

Morei quase vinte anos no Recife. Residi em vários bairros: Boa Vista, Santo Antônio, São José, Dérbi, Casa Amarela, Prado, Torre, Capunga. Jamais vi enchentes, do Capibaribe ou do Beberibe. O mar batia fortemente em Olinda, todavia, não ameaçava as casas. Algumas vezes, cheias, com os rios sujos, mas sem que as águas invadissem residências, destruíssem pontes e derrubassem os cais. Entretanto, a cidade inchou. Nada foi planificado. Aterros e mais aterros. Fecharam o acesso das águas. O mar invadiu Olinda. Construíram arrecifes pelas praias dos Milagres, Carmo, São Francisco, Farol e Cajueiros. Também naqueles lados, quem quiser paisagem nordestina à beira-mar terá de ir mais para o norte, para o Rio Tapado, Casa Caiada, Rio Doce. Os velhos mangues desapareceram. Cada nova ponte é barragem. E os rios transbordam com. facilidade...

As enchentes do Recife não são provocadas, como as do Rio de Janeiro, por imensas precipitações pluviais. Basta uma chuva mais forte no interior, lá nas nascentes, para a cidade sofrer. Muita vez, nem chove no Recife, mas as águas sobem, passam de dois metros em vários bairros, destroem tudo. E trazem milhares de cobras venenosas para as casas recifenses.

Uma senhora foi mordida num ônibus, A cobra estava embaixo da almofada do assento. Um conhecido matou nove, das mais temíveis, dentro de casa. Um outro me disse:

– Fiquei impressionado. De manhã cedo, fui ao banheiro, fazer a barba. Encontrei duas cobras dentro do armário. Como entraram ali é mistério...

As autoridades nada fizeram, até agora, para evitar as enchentes. Estão reconstruindo pontes e cais que tombaram, para que outras inundações os derrubem novamente...

Assim encontrei o novo Recife. Pouco resta do velho, das ruas tortuosas de minha infância, das praias de minhas vadiagens, das escolas que me expulsaram como aluno indisciplinado. A paisagem é outra.

O Recife inchou.

Recife, PE, em 1967 [Imagem do Arquivo Nacional]

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de março de 1967)