quarta-feira, 6 de outubro de 2021

RECIFE

VELHO AMIGO vem visitar-me. Pede minhas impressões sobre o novo Recife. Digo-lhe que me sinto velho diante da cidade que me viu nascer. Bairros inteiramente reconstruídos, edifícios de mais de vinte andares, movimento intenso, largas avenidas, demolições constantes dos antigos pardieiros, pontes recentes, visível e assustadora explosão democrática.

– O Recife não cresceu, afirma. Inchou.

– Teria sido em conseqüência das enchentes?

– Decerto.

Caminho pelas ruas modificadas. Tento localizar pontos que me eram familiares. Relembro episódios. Há vinte e seis anos deixei a cidade de vez, mas apenas há quatro meus olhos não reencontram o Capibaribe.

Não conhecia a Ponte do Limoeiro nem a Avenida Norte. O Banco do Brasil e o Pronto Socorro ocupam majestosos edifícios. As avenidas Guararapes e Visconde da Boa Vista, ligadas pela Ponte Duarte Coelho, são a espinha dorsal do Recife. Perderam a expressão as ruas Nova e Imperatriz. Boa Viagem foi assassinada pela ganância imobiliária: não mais os coqueiros, as lindas residências. Ganhou prédios, apartamentos, comércio, quer ser Copacabana. Agora, quem desejar paisagens nordestinas à beira-mar terá de ir mais para o sul, para Piedade. Candeias. Gaibu.

O trânsito necessita, urgentemente, de um Fontenele. Excesso de veículos e, por conseguinte, disputa constante entre motoristas. Se qualquer pessoa levanta o braço, distraidamente, para coçar a cabeça, um carro de aluguel pára, pensando que foi chamado...

Morei quase vinte anos no Recife. Residi em vários bairros: Boa Vista, Santo Antônio, São José, Dérbi, Casa Amarela, Prado, Torre, Capunga. Jamais vi enchentes, do Capibaribe ou do Beberibe. O mar batia fortemente em Olinda, todavia, não ameaçava as casas. Algumas vezes, cheias, com os rios sujos, mas sem que as águas invadissem residências, destruíssem pontes e derrubassem os cais. Entretanto, a cidade inchou. Nada foi planificado. Aterros e mais aterros. Fecharam o acesso das águas. O mar invadiu Olinda. Construíram arrecifes pelas praias dos Milagres, Carmo, São Francisco, Farol e Cajueiros. Também naqueles lados, quem quiser paisagem nordestina à beira-mar terá de ir mais para o norte, para o Rio Tapado, Casa Caiada, Rio Doce. Os velhos mangues desapareceram. Cada nova ponte é barragem. E os rios transbordam com. facilidade...

As enchentes do Recife não são provocadas, como as do Rio de Janeiro, por imensas precipitações pluviais. Basta uma chuva mais forte no interior, lá nas nascentes, para a cidade sofrer. Muita vez, nem chove no Recife, mas as águas sobem, passam de dois metros em vários bairros, destroem tudo. E trazem milhares de cobras venenosas para as casas recifenses.

Uma senhora foi mordida num ônibus, A cobra estava embaixo da almofada do assento. Um conhecido matou nove, das mais temíveis, dentro de casa. Um outro me disse:

– Fiquei impressionado. De manhã cedo, fui ao banheiro, fazer a barba. Encontrei duas cobras dentro do armário. Como entraram ali é mistério...

As autoridades nada fizeram, até agora, para evitar as enchentes. Estão reconstruindo pontes e cais que tombaram, para que outras inundações os derrubem novamente...

Assim encontrei o novo Recife. Pouco resta do velho, das ruas tortuosas de minha infância, das praias de minhas vadiagens, das escolas que me expulsaram como aluno indisciplinado. A paisagem é outra.

O Recife inchou.

Recife, PE, em 1967 [Imagem do Arquivo Nacional]

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de março de 1967)

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