quarta-feira, 1 de junho de 2022

PONTE DA BOA-VISTA

A enchente ameaçou a velha Ponte da Boa-Vista. O Capibaribe também se zanga. rio e ponte que pertencem à paisagem de minha infância – ponte e rio que são saudade.

Volto ao passado, mergulho em lembranças, quando vou a pé pelas ruas do Recife. Revejo os que se foram para sempre. Sinto saudade de mim mesmo. E as velhas pontes – Maurício de Nassau, Buarque de Macedo, a Limoeiro, a Santa Isabel, Torre, Madalena – são mirantes de minha paisagem. Sobretudo, a Boa-Vista. Com ela, a Giratória.

Padre Félix acabou descobrindo para onde íamos, nos dias de aula de matemática, quando o prof. José Miranda, boníssimo, nos ensinava a achar logaritmos na tábua de Callet. Já existiam alcagüetes, embora em menor quantidade, naqueles tempos...

Íamos para a Ponte Giratória, pescar. A ponte se abria, girando a parte do centro, para dar passagem às embarcações mais altas, que vinham atracar no Cais do Abacaxi, junto à praça 17. Os rebocadores dobravam as chaminés e não incomodavam a ponte; as barcaças, porém, só entravam no rio quando ela deixava. E ali ficávamos, achando peixes, até o professor Miranda acabar de achar os logaritmos...

Da ponte de Madalena pulei de cabeça. Sob a de Limoeiro peguei caranguejo. Da Ilha do Retiro à Ponte da Boa-Vista (calculamos cinco mil metros) já vim nadando. Perto da Ponte da Capunga levei tombo da motocicleta. Na da Torre namorei lavadeiras que nos davam atenção e carícias, porque íamos mal vestidos, disfarçados de trabalhadores, e elas desconfiavam de que éramos estudantes, da pensão do Dérbi...

Teria muito o que contar de cada ponte do Recife, porque a cidade as possui em quantidade, cada uma com sua história, com vida própria; há as que trabalham mais, há as menos ocupadas; as que se transformam em atrativos noturnos e as que são perigosas à noite; boêmias e operárias; familiares e sem preconceitos. Andei por todas. Conheço-as palmo a palmo.

Quando a Casa da Detenção, na ditadura do Estado Novo, se transformou em Presídio Especial, as mães dos detidos descobriram que eles passavam para o banho, todos os dias, às dez horas. Do alto da Ponte Velha viam os filhos e acenavam lenços brancos. Eles respondiam com as toalhas. Mas o chefe político de Polícia soube da “subversão”, e, na hora do banho dos presos, mandou soldados com metralhadoras, para o alto da ponte, com ordem de atirar nas mães.

Agora, a Ponte da Boa-Vista vai abandonar a paisagem. O Capibaribe andou muito zangado. A velha ponte – de 1876, se não estou enganado – não teve mais pernas para resistir.

Ficará em livros, em fotografias, será lembrança. No local foi construída a segunda ponte do Recife. A primeira, a Maurício de Nassau, vem dos tempos do domínio holandês; a segunda ligou a Ilha de Santo Antônio ao Bairro da Boa-Vista – melhor dizendo: a Rua Nova à Rua da Imperatriz.

Quando surgiu, era de madeira. Tinha banquinhos públicos, para as reuniões sociais. Nos dias úteis, senhores preocupados ali se sentavam e discutiam política, negócios, a situação do País, a crise econômica, a carestia da vida. Nos domingos, à tarde, as famílias vinham ver as modas e opinar sobre os últimos penteados parisienses. À noite, em qualquer dia, era o caminho dos amores fáceis, dos boêmios, bêbedos – então, a Ponte da Boa-Vista ofendia em cheio a sociedade...

Os anos acabaram com tudo isso. As maxambombas eliminaram os bondinhos de burros, as seges, os ônibus. As pontes de madeira foram substituídas por pontes de ferro, para as maxambombas.  A da Boa-Vista acompanhou o progresso. E serviu até aos bondes da Tramways.

Com ela se vão meus passos vadios, de uma fase de vida despreocupada, feliz. Aquela alegria de jovem, sonhos para o futuro, sonhos que se não realizaram porque o futuro também já está virando passado, um punhado de crenças e de ilusões vão ser carregados, também, pelo Capibaribe, junto com a Ponte da Boa-Vista, a minha ponte, passagem obrigatória de minha infância, pedaço da paisagem que tanto amei.

É mais um pouco de mim mesmo que se vai para sempre. 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1965)