A enchente ameaçou a velha Ponte da Boa-Vista. O Capibaribe também
se zanga. rio e ponte que pertencem à paisagem de minha infância – ponte e rio
que são saudade.
Volto ao passado, mergulho em lembranças, quando vou a pé pelas
ruas do Recife. Revejo os que se foram para sempre. Sinto saudade de mim mesmo.
E as velhas pontes – Maurício de Nassau, Buarque de Macedo, a Limoeiro, a Santa
Isabel, Torre, Madalena – são mirantes de minha paisagem. Sobretudo, a
Boa-Vista. Com ela, a Giratória.
Padre Félix acabou descobrindo para onde íamos, nos dias de aula
de matemática, quando o prof. José Miranda, boníssimo, nos ensinava a achar
logaritmos na tábua de Callet. Já existiam alcagüetes, embora em menor
quantidade, naqueles tempos...
Íamos para a Ponte Giratória, pescar. A ponte se abria, girando a
parte do centro, para dar passagem às embarcações mais altas, que vinham
atracar no Cais do Abacaxi, junto à praça 17. Os rebocadores dobravam as
chaminés e não incomodavam a ponte; as barcaças, porém, só entravam no rio
quando ela deixava. E ali ficávamos, achando peixes, até o professor Miranda
acabar de achar os logaritmos...
Da ponte de Madalena pulei de cabeça. Sob a de Limoeiro peguei
caranguejo. Da Ilha do Retiro à Ponte da Boa-Vista (calculamos cinco mil
metros) já vim nadando. Perto da Ponte da Capunga levei tombo da motocicleta.
Na da Torre namorei lavadeiras que nos davam atenção e carícias, porque íamos
mal vestidos, disfarçados de trabalhadores, e elas desconfiavam de que éramos
estudantes, da pensão do Dérbi...
Teria muito o que contar de cada ponte do Recife, porque a cidade
as possui em quantidade, cada uma com sua história, com vida própria; há as que
trabalham mais, há as menos ocupadas; as que se transformam em atrativos
noturnos e as que são perigosas à noite; boêmias e operárias; familiares e sem
preconceitos. Andei por todas. Conheço-as palmo a palmo.
Quando a Casa da Detenção, na ditadura do Estado Novo, se transformou
em Presídio Especial, as mães dos detidos descobriram que eles passavam para o
banho, todos os dias, às dez horas. Do alto da Ponte Velha viam os filhos e
acenavam lenços brancos. Eles respondiam com as toalhas. Mas o chefe político
de Polícia soube da “subversão”, e, na hora do banho dos presos, mandou
soldados com metralhadoras, para o alto da ponte, com ordem de atirar nas mães.
Agora, a Ponte da Boa-Vista vai abandonar a paisagem. O Capibaribe
andou muito zangado. A velha ponte – de 1876, se não estou enganado – não teve
mais pernas para resistir.
Ficará em livros, em fotografias, será lembrança. No local foi
construída a segunda ponte do Recife. A primeira, a Maurício de Nassau, vem dos
tempos do domínio holandês; a segunda ligou a Ilha de Santo Antônio ao Bairro
da Boa-Vista – melhor dizendo: a Rua Nova à Rua da Imperatriz.
Quando surgiu, era de madeira. Tinha banquinhos públicos, para as
reuniões sociais. Nos dias úteis, senhores preocupados ali se sentavam e
discutiam política, negócios, a situação do País, a crise econômica, a carestia
da vida. Nos domingos, à tarde, as famílias vinham ver as modas e opinar sobre
os últimos penteados parisienses. À noite, em qualquer dia, era o caminho dos
amores fáceis, dos boêmios, bêbedos – então, a Ponte da Boa-Vista ofendia em
cheio a sociedade...
Os anos acabaram com tudo isso. As maxambombas eliminaram os
bondinhos de burros, as seges, os ônibus. As pontes de madeira foram
substituídas por pontes de ferro, para as maxambombas. A da Boa-Vista acompanhou o progresso. E
serviu até aos bondes da Tramways.
Com ela se vão meus passos vadios, de uma fase de vida
despreocupada, feliz. Aquela alegria de jovem, sonhos para o futuro, sonhos que
se não realizaram porque o futuro também já está virando passado, um punhado de
crenças e de ilusões vão ser carregados, também, pelo Capibaribe, junto com a
Ponte da Boa-Vista, a minha ponte, passagem obrigatória de minha infância,
pedaço da paisagem que tanto amei.
É mais um pouco de mim mesmo que se vai para sempre.
(In Telhado de
Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1965)