quarta-feira, 8 de março de 2023

EU SOU ASSIM!

QUANDO os de minha geração pegaram um “Ita” no Norte e vieram para a Galeria Cruzeiro, via Armazém 13 do Cais do Porto, tudo fazíamos para esconder a prosódia. O que dizíamos fazia rir. Nosso e aberto, o jeito de engolir a última sílaba, o fôsse  em vez de fôste, o arrastado de voz – enfim, éramos cômicos.

Tinha eu em mente a expressão do velho Xandu, latinista primeiro e último de Vitória de Santo Antão:

  Em se tratando de prosódia, a ortoepia se põe, deveras, a nosso lado.

(Xandu dizia ortoepia, com absoluta convicção, e, não, ortoépia...) (*)

Pouco nos valia a recomendação do mestre. Bastava que um de nós falasse na Rua do Riachuélo (é), para que o carioca nos emendasse, rindo:

 Riachuêlo, rapaz. É êlo, e, não, élo.

O butar, tão recifense, dito pelas melhores famílias, chamava a atenção. O Rèècife, que dizíamos com tanta propriedade, irritava os ouvidos sulinos:

 Rêêêcife, rapaz!

Discutíamos, às vezes:

 A letra é É, aberto; e não Ê, fechado.

Mas não adiantava. O pessoal ria. Mangava da gente. O remédio era disfarçar o sotaque. Esquecer o oxente, o bichinho, o danou-se, e aprender novas exclamações, como o pôxa!

Palavras de nossa estima foram substituídas. Quartinha virou moringa, apesar do protesto do Xandu:

 Moringa é jarro com asas. Estamos certos. Sem asas é quartinha.

Não imigramos, todavia, para modificar o Rio. Viemos ingressar na paisagem, e, em conseqüência, amar também a terra. Aderimos ao moringa. Nossa macaxeira virou aipim, o jerimum se transformou em abóbora; e casinha ganhou a forma pomposa toalete.

Por causa disso, no Aeroporto Santos Dumont, um industrial pernambucano, vendo que seu avião não saía, pois se achava em trânsito para S. Paulo, aproximou-se do balcão da companhia, para protestar, com a ficha de vôo na ponta dos dedos. E a recepcionista:

 Seu avião já se foi há mais de meia-hora.

 Não me chamaram, oxente! Fiquei o tempo todo ouvindo o alto-falante, bichinha.

 Chamamos as fichas cor de abóbora.

 A minha é cor de jerimum...

Anos depois, virou moda falar ao jeito nordestino. Até quem não era da terra fazia força para nos imitar. E usava nossos ditados: “Binóculo de pobre é ver de perto”, “Um gambá cheira o outro”, “Pintada que só rodapé de parede”, “Cansado que só charuto na boca de bêbedo”, “Feia como a moléééstia!” Mas já era tarde. Minha geração, pelo hábito, havia esquecido seu jeito de ser.

Há coisa de dois anos, voltei à gloriosa Cidade das Tabocas, em companhia do poeta Ghiaroni. Em quinze minutos de palestra com a minha gente, readquiri meu sotaque, aderi à ortoepia (como diria o Xandu) e bebi água de quartinha, comi macaxeira, fui à casinha, pedi a minha tia que butasse mais jerimum no meu prato, e, quando me disseram que a antiga namorada virou mulher-dama, lamentei, espantado:

 Oxente! Danou-se a bichinha?! Virge!

Ghiaroni, horas depois, observou:

 Você pegou o modo de falar.

 Peguei mesmo.

 Pensei que fosse para ser gentil com os seus parentes.

Não, Ghiaroni. Repito-lhe, agora, quando a saudade vem à flor, porque relembro meu chão. Repito-lhe, nesta manhã alegre em que o dia é claro, meus pássaros cantam na varandinha de pensar, e sinto aquela velha saudade de mim mesmo. Repito:

 Não, Ghiaroni. Eu, na realidade, sou assim.


(*) O mesmo que prosódia. Atualmente, usa-se os dois vocábulos à vontade: ortoépia ou ortoepia.

OUTRAS TELHAS

·      REFLEXÕES – Prosseguindo a publicação das obras completas de Matheus de Albuquerque, a Pongetti lançou As Belas Atitudes. Virge!!!...

·      POESIA – E David de Araújo publica sonetos também pela Pongetti, intitulados Primeiros Sonhos. Danou-se!!!...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1965) 

quarta-feira, 1 de março de 2023

RIO, CIDADE MARAVILHOSA

O “Douglas” preparou a descida, fez lá o que eles chamam de “problema” e montou na pista. Quando eu pensava que a pista ia acabar, o avião voltou, fez curvas e conseguimos pousar. Abriram-lhe a barriga e nós, os apêndices, descemos.

A moça bairrista suspirou:

– Graças a Deus, estamos, novamente, em São Paulo.

Ganhou sorriso de ratificação do pai, também bairrista, mas nascido em Juazeiro do Norte, de onde saiu com oito anos de idade, para crescer em Taubaté e vir a ser negociante num escritório da Avenida São João.

Livrei-me de todos e me enfiei num táxi. O motorista, filho legítimo do Brás, se pôs a vomitar queixas amargas contra a vida, enquanto não chegávamos à Avenida Ipiranga.

Nascido e criado em São Paulo, lamentou, sinceramente, que sua cidade só pensasse em crescer, mas esperava muito do Prefeito de então, o qual conhecia bem as necessidades da povo paulistano.

O sinal fechou:

– Cidade ideal para se morar é o Rio de Janeiro. O povo é bom, gentil, delicado. Um trocador do ônibus ou um motorista tratam os passageiros com amabilidade. Os choferes de táxis do Rio não rejeitam fregueses e há automóveis à disposição de todos, a qualquer hora do dia ou da noite.

O sinal abriu:

– No Rio não existe hora em que o trânsito esteja apertado. As autoridades fazem tudo para melhorar a vida da população. Nada falta. Os gêneros são mais baratos e ninguém pensa em roubar nos preços. Não há ladrões assaltando na via pública. Todos os crimes são descobertos, imediatamente, pela polícia.

Olhei para ele, espantado. Outro sinal fechou. Parou o carro:

– No Rio há grande número de escolas e hospitais, e tudo de graça para os mais necessitados.. Aluguel de casa é barato. Os apartamentos são amplos, confortáveis, arejados, claros. Há água à vontade.

O sinal abriu:

– Tudo isso por quê? Porque todo mundo trabalha. Ninguém anda vagabundeando. Nos dias úteis, os cinemas ficam às moscas. Há filas nas bibliotecas públicas. As livrarias são muitas e têm grandes lucros, porque a gente gosta de ler. Não há ruas esburacadas.

Caiu num buraco de rua, soltou um palavrão, cuspiu para fora:

– A Prefeitura tem verbas para gastar na conservação das ruas. Os políticos não fazem demagogia nem são os eternos caçadores de votos. Apesar de ficar à beira do mar, no Rio não se vende contrabando, porque todo mundo se respeita.

Avenida Ipiranga e desabafo final do motorista:

– Ai, ai! A vida no Rio é a melhor do mundo.

Parou o carro e perguntei:

– O senhor conhece o Rio?

 Não.

– – – – – – – – – – – –  

(Publicada inicialmente com o título “Depoimentos”, na seção Telhado de Vidro. Shopping News, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1957. E, posteriormente, com modificações, nos seus livros de crônicas: Ah! Saudade Engraçada!.., editado pela Livraria São José, em 1962; e Telhado de Vidro, volume II, editado pela BRADIL, em 1967)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

DESPEDIDA

Nos fundos de minha morada, homens compraram três casas. Ficavam em grandes terrenos frondosamente arborizados. Andorinhas e borboletas e pombos eram a fauna matinal de meu recomeçar de todos os dias, na varandinha de pensar. E sempre fomos felizes, eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas, no azul das manhãs.

Tínhamos nossas mangueiras espessas, de troncos negros fincados na terra. Também nossos coqueiros, goiabeiras, pequena hortaliça. Havia ainda outras árvores, algumas até imponentes, mas eu, em meus vôos, em meu cantar, em minhas manhãs vadias, jamais me lembrei de identificá-las.

Compraram as casas, os moradores se mudaram e os homens chegaram para acabar com tudo. De início, o malabarismo de atirar telhas de mão em mão. Depois, as paredes tombaram. Vi sair a velha banheira. Não mais importou que o encerado do assoalho se expusesse à chuva, ao sol, ao sereno. O mural japonês, de mau-gosto, com um biombo, a gueixa, quimono, quiosque, arrozal na paisagem, tudo tombou na técnica engenhosa da demolição. É triste ver o fim das coisas!

Agora, chegou a vez das árvores. Três mangueiras não são mais nada. Alguns de nós, andorinhas, borboletas, pombos, já desaparecemos em busca de outros sítios, em vôos do nunca-mais, exilados da própria sorte, retirantes do espaço.

Nos três terrenos, agora transformados em um só, construirão o maior cinema da Zona Sul. Em nosso sítio – meu, dos pombos, das borboletas e andorinhas – verão as sardas de Van Johnson, o busto de Jayne Mansfield, a careca de Yul Brynner, a guitarra cambaia de Elvis Presley, as sobrancelhas pintadas de Tony Curtis. É a civilização. Nós – eu, andorinhas, borboletas, e pombos – somos os brutos. E falta pouco para sermos enxotados de vez.

Resta um coqueiro. Cinco mangueiras ainda não foram executadas. Poucas folhas, em vista do que era, ainda não deixaram despido, totalmente, o chão.

Além do cinema, subirão aos céus doze andares de consultórios, escritórios, habitações, “garçonnières”. Mais uma babel à Copacabana.

Antes disso, porém, nos iremos de vez – eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas. Só esperamos assistir ao último suspiro do coqueiro e das cinco mangueiras. Dentro de poucos dias, portanto, nós, os remanescentes, também seremos retirantes do espaço, exilados da sorte, em vôos do nunca-mais.

Onde nascer majestoso edifício, sobre um cinema, aí, porém, haverá um vazio, o meu vazio, das andorinhas, das borboletas e pombos. O vazio de meu recomeçar de todos os dias, no azul das manhãs vadias.

E, desde já, adeus.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 de março de 1963)


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

DA NECESSIDADE DE ESCREVER

LEITORA amiga, escrever não é “necessidade espiritual”; para mim, é estomacal. Ah, estiva, madama Sou dos fregueses mais assíduos das fitas de máquina, e o telecoteco desta “Olivetti” que lhe fala é o “leitmotiv” mais constante das 24 horas diárias de meus vizinhos – bons e pacientes vizinhos, por sinal.

Tenho boné e calção que irritam os moradores das janelas fronteiras. Olham de longe o doméstico cercado de livros pelos sete lados, ora indo à varanda para pescar assunto no espaço, ora voltando à mesa cara corrigir matérias encerradas, e dizem lá com seus botões:

– Grande malandro: Sempre em casa!

Respondo, com meu calção e meu boné:

– Homem feliz: Saiu cedo, abriu loja, vendeu, recebeu, fechou a loja e já está na janela, depois do banho da tarde, chupando seu charuto, fazendo hora para o cinema!

Invejo os que têm ofício, dona, Duro é não fazer mais nada, senão o que a senhora está vendo e meus vizinhos estão ouvindo.

O primeiro sonho foi ser veterano da Guerra do Paraguai. Nos meus oito anos, achava isso lindo. A expressão me soava divinamente: “veterano da Guerra do Paraguai”. Porque conheci alguns e eram muito respeitados...

Depois, achei que condutor de bonde seria melhor. Porque a vida me mostrou que ele era o único a receber. E não entendia o motivo por que passava troco...

Mas o tempo foi desfazendo ilusões. Foi comendo sonhos. A estória se parece com a do cidadão que perguntou ao canibal:

– Como foi que o senhor ficou antropófago?

– Comecei roendo as unhas.

Eu comecei escrevendo cartas de pedir emprego...

Agora, a senhora é quem me manda carta. Quer que eu responda com outra, num dia de folga. Não posso. Seria o mesmo que motorneiro sair, no dia de folga, para passear de bonde...

Quanto à sua mania de escrever por “necessidade espiritual”, trate de desistir. Consulte psicanalista. Porque é mal. Acaba viciando. A necessidade pode transformar-se em estomacal.

E não desejo isso a ninguém, nem mesmo ao Julio Tavares (*), que não sabe escrever.


(*) NotaPseudônimo utilizado pelo Carlos Lacerda.

OUTRAS TELHAS

·      BOSSA-NOVA – Pedem alguns leitores opinião sobre a bossa-nova e seu respectivo fracasso. Gosto de ambas as coisas – isto é: do fracasso e da bossa. O gênero não é nosso. De brasileiro, não tem nem o João Gilberto. Reparem no baterista da bossa-nova: quando lhe dão um breque, ele faz “jazz”, mascando chicles, e. depois, volta ao ritmo anterior, que, por sinal, é muito fraquinho, com aquela bandinha de sempre. Ouçam, para exemplo, a gravação que Luciano Perrone, o maior baterista realmente brasileiro, fez do samba “Na Pavuna”, de Ary Barroso. Ele dá sete breques de samba diferentes, todos realmente verde-amarelo. Esse mesmo Ari Barroso diz, com muito acerto, que música brasileira tem ritmo por si só. Não precisa de instrumento de percussão, para definir-se. Qualquer um pode verificar isso, com facilidade, solfejando, por exemplo, o “Falsa Baiana”, do saudoso Geraldo Pereira. Para demonstrar mais, basta ver que Radamés Gnattali está inteiramente por fora da bossa-nova. Por quê? Primeiro, porque é Músico (“M” Grande, gente, que não é favor); segundo, porque só entra em jogadas genuinamente brasileiras. É o mais nacionalista de nossos grande compositores. Qualquer de seus concertos tem tanta alma do Brasil que emocionaria só por isso. A argumentação, porém, não quer dizer que eu não aceite a bossa-nova. Gosto, mas como gosto de tango, bolero, rumba, e, com maior propriedade, de “jazz”. Enfim, o fracasso da bossa-nova nos Estados Unidos, não é nosso. É deles...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1962)