quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

DA NECESSIDADE DE ESCREVER

LEITORA amiga, escrever não é “necessidade espiritual”; para mim, é estomacal. Ah, estiva, madama Sou dos fregueses mais assíduos das fitas de máquina, e o telecoteco desta “Olivetti” que lhe fala é o “leitmotiv” mais constante das 24 horas diárias de meus vizinhos – bons e pacientes vizinhos, por sinal.

Tenho boné e calção que irritam os moradores das janelas fronteiras. Olham de longe o doméstico cercado de livros pelos sete lados, ora indo à varanda para pescar assunto no espaço, ora voltando à mesa cara corrigir matérias encerradas, e dizem lá com seus botões:

– Grande malandro: Sempre em casa!

Respondo, com meu calção e meu boné:

– Homem feliz: Saiu cedo, abriu loja, vendeu, recebeu, fechou a loja e já está na janela, depois do banho da tarde, chupando seu charuto, fazendo hora para o cinema!

Invejo os que têm ofício, dona, Duro é não fazer mais nada, senão o que a senhora está vendo e meus vizinhos estão ouvindo.

O primeiro sonho foi ser veterano da Guerra do Paraguai. Nos meus oito anos, achava isso lindo. A expressão me soava divinamente: “veterano da Guerra do Paraguai”. Porque conheci alguns e eram muito respeitados...

Depois, achei que condutor de bonde seria melhor. Porque a vida me mostrou que ele era o único a receber. E não entendia o motivo por que passava troco...

Mas o tempo foi desfazendo ilusões. Foi comendo sonhos. A estória se parece com a do cidadão que perguntou ao canibal:

– Como foi que o senhor ficou antropófago?

– Comecei roendo as unhas.

Eu comecei escrevendo cartas de pedir emprego...

Agora, a senhora é quem me manda carta. Quer que eu responda com outra, num dia de folga. Não posso. Seria o mesmo que motorneiro sair, no dia de folga, para passear de bonde...

Quanto à sua mania de escrever por “necessidade espiritual”, trate de desistir. Consulte psicanalista. Porque é mal. Acaba viciando. A necessidade pode transformar-se em estomacal.

E não desejo isso a ninguém, nem mesmo ao Julio Tavares (*), que não sabe escrever.


(*) NotaPseudônimo utilizado pelo Carlos Lacerda.

OUTRAS TELHAS

·      BOSSA-NOVA – Pedem alguns leitores opinião sobre a bossa-nova e seu respectivo fracasso. Gosto de ambas as coisas – isto é: do fracasso e da bossa. O gênero não é nosso. De brasileiro, não tem nem o João Gilberto. Reparem no baterista da bossa-nova: quando lhe dão um breque, ele faz “jazz”, mascando chicles, e. depois, volta ao ritmo anterior, que, por sinal, é muito fraquinho, com aquela bandinha de sempre. Ouçam, para exemplo, a gravação que Luciano Perrone, o maior baterista realmente brasileiro, fez do samba “Na Pavuna”, de Ary Barroso. Ele dá sete breques de samba diferentes, todos realmente verde-amarelo. Esse mesmo Ari Barroso diz, com muito acerto, que música brasileira tem ritmo por si só. Não precisa de instrumento de percussão, para definir-se. Qualquer um pode verificar isso, com facilidade, solfejando, por exemplo, o “Falsa Baiana”, do saudoso Geraldo Pereira. Para demonstrar mais, basta ver que Radamés Gnattali está inteiramente por fora da bossa-nova. Por quê? Primeiro, porque é Músico (“M” Grande, gente, que não é favor); segundo, porque só entra em jogadas genuinamente brasileiras. É o mais nacionalista de nossos grande compositores. Qualquer de seus concertos tem tanta alma do Brasil que emocionaria só por isso. A argumentação, porém, não quer dizer que eu não aceite a bossa-nova. Gosto, mas como gosto de tango, bolero, rumba, e, com maior propriedade, de “jazz”. Enfim, o fracasso da bossa-nova nos Estados Unidos, não é nosso. É deles...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1962)

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