quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

DESPEDIDA

Nos fundos de minha morada, homens compraram três casas. Ficavam em grandes terrenos frondosamente arborizados. Andorinhas e borboletas e pombos eram a fauna matinal de meu recomeçar de todos os dias, na varandinha de pensar. E sempre fomos felizes, eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas, no azul das manhãs.

Tínhamos nossas mangueiras espessas, de troncos negros fincados na terra. Também nossos coqueiros, goiabeiras, pequena hortaliça. Havia ainda outras árvores, algumas até imponentes, mas eu, em meus vôos, em meu cantar, em minhas manhãs vadias, jamais me lembrei de identificá-las.

Compraram as casas, os moradores se mudaram e os homens chegaram para acabar com tudo. De início, o malabarismo de atirar telhas de mão em mão. Depois, as paredes tombaram. Vi sair a velha banheira. Não mais importou que o encerado do assoalho se expusesse à chuva, ao sol, ao sereno. O mural japonês, de mau-gosto, com um biombo, a gueixa, quimono, quiosque, arrozal na paisagem, tudo tombou na técnica engenhosa da demolição. É triste ver o fim das coisas!

Agora, chegou a vez das árvores. Três mangueiras não são mais nada. Alguns de nós, andorinhas, borboletas, pombos, já desaparecemos em busca de outros sítios, em vôos do nunca-mais, exilados da própria sorte, retirantes do espaço.

Nos três terrenos, agora transformados em um só, construirão o maior cinema da Zona Sul. Em nosso sítio – meu, dos pombos, das borboletas e andorinhas – verão as sardas de Van Johnson, o busto de Jayne Mansfield, a careca de Yul Brynner, a guitarra cambaia de Elvis Presley, as sobrancelhas pintadas de Tony Curtis. É a civilização. Nós – eu, andorinhas, borboletas, e pombos – somos os brutos. E falta pouco para sermos enxotados de vez.

Resta um coqueiro. Cinco mangueiras ainda não foram executadas. Poucas folhas, em vista do que era, ainda não deixaram despido, totalmente, o chão.

Além do cinema, subirão aos céus doze andares de consultórios, escritórios, habitações, “garçonnières”. Mais uma babel à Copacabana.

Antes disso, porém, nos iremos de vez – eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas. Só esperamos assistir ao último suspiro do coqueiro e das cinco mangueiras. Dentro de poucos dias, portanto, nós, os remanescentes, também seremos retirantes do espaço, exilados da sorte, em vôos do nunca-mais.

Onde nascer majestoso edifício, sobre um cinema, aí, porém, haverá um vazio, o meu vazio, das andorinhas, das borboletas e pombos. O vazio de meu recomeçar de todos os dias, no azul das manhãs vadias.

E, desde já, adeus.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 de março de 1963)


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