QUANDO os de minha geração pegaram um “Ita” no Norte e vieram para
a Galeria Cruzeiro, via Armazém 13 do Cais do Porto, tudo fazíamos para
esconder a prosódia. O que dizíamos fazia rir. Nosso e aberto, o jeito
de engolir a última sílaba, o fôsse em vez de fôste, o arrastado de voz –
enfim, éramos cômicos.
Tinha eu em mente a expressão do velho Xandu, latinista primeiro e
último de Vitória de Santo Antão:
– Em se tratando de prosódia, a ortoepia se põe, deveras, a nosso
lado.
(Xandu dizia ortoepia, com absoluta convicção, e, não, ortoépia...) (*)
Pouco nos valia a recomendação do mestre. Bastava que um de nós
falasse na Rua do Riachuélo (é), para que o carioca nos emendasse,
rindo:
– Riachuêlo, rapaz. É êlo, e, não, élo.
O butar, tão recifense, dito pelas melhores famílias,
chamava a atenção. O Rèècife, que dizíamos com tanta propriedade,
irritava os ouvidos sulinos:
– Rêêêcife, rapaz!
Discutíamos, às vezes:
– A letra é É, aberto; e não Ê, fechado.
Mas não adiantava. O pessoal ria. Mangava da gente. O remédio era
disfarçar o sotaque. Esquecer o oxente, o bichinho, o danou-se,
e aprender novas exclamações, como o pôxa!
Palavras de nossa estima foram substituídas. Quartinha
virou moringa, apesar do protesto do Xandu:
– Moringa é jarro com asas. Estamos certos. Sem asas é quartinha.
Não imigramos, todavia, para modificar o Rio. Viemos ingressar na
paisagem, e, em conseqüência, amar também a terra. Aderimos ao moringa.
Nossa macaxeira virou aipim, o jerimum se transformou em abóbora;
e casinha ganhou a forma pomposa toalete.
Por causa disso, no Aeroporto Santos Dumont, um industrial
pernambucano, vendo que seu avião não saía, pois se achava em trânsito para S.
Paulo, aproximou-se do balcão da companhia, para protestar, com a ficha de vôo
na ponta dos dedos. E a recepcionista:
– Seu avião já se foi há mais de meia-hora.
– Não me chamaram, oxente! Fiquei o tempo todo ouvindo o
alto-falante, bichinha.
– Chamamos as fichas cor de abóbora.
– A minha é cor de jerimum...
Anos depois, virou moda falar ao jeito nordestino. Até quem não
era da terra fazia força para nos imitar. E usava nossos ditados: “Binóculo de
pobre é ver de perto”, “Um gambá cheira o outro”, “Pintada que só rodapé de
parede”, “Cansado que só charuto na boca de bêbedo”, “Feia como a moléééstia!”
Mas já era tarde. Minha geração, pelo hábito, havia esquecido seu jeito de ser.
Há coisa de dois anos, voltei à gloriosa Cidade das Tabocas, em
companhia do poeta Ghiaroni. Em quinze minutos de palestra com a minha gente,
readquiri meu sotaque, aderi à ortoepia (como diria o Xandu) e bebi água de
quartinha, comi macaxeira, fui à casinha, pedi a minha tia que butasse
mais jerimum no meu prato, e, quando me disseram que a antiga namorada virou mulher-dama,
lamentei, espantado:
– Oxente! Danou-se a bichinha?! Virge!
Ghiaroni, horas depois, observou:
– Você pegou o modo de falar.
– Peguei mesmo.
– Pensei que fosse para ser gentil com os seus parentes.
Não, Ghiaroni. Repito-lhe, agora, quando a saudade vem à flor,
porque relembro meu chão. Repito-lhe, nesta manhã alegre em que o dia é claro,
meus pássaros cantam na varandinha de pensar, e sinto aquela velha saudade de
mim mesmo. Repito:
– Não, Ghiaroni. Eu, na realidade, sou assim.
(*) O mesmo que prosódia. Atualmente, usa-se os dois vocábulos à vontade: ortoépia ou ortoepia.
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