quarta-feira, 8 de março de 2023

EU SOU ASSIM!

QUANDO os de minha geração pegaram um “Ita” no Norte e vieram para a Galeria Cruzeiro, via Armazém 13 do Cais do Porto, tudo fazíamos para esconder a prosódia. O que dizíamos fazia rir. Nosso e aberto, o jeito de engolir a última sílaba, o fôsse  em vez de fôste, o arrastado de voz – enfim, éramos cômicos.

Tinha eu em mente a expressão do velho Xandu, latinista primeiro e último de Vitória de Santo Antão:

  Em se tratando de prosódia, a ortoepia se põe, deveras, a nosso lado.

(Xandu dizia ortoepia, com absoluta convicção, e, não, ortoépia...) (*)

Pouco nos valia a recomendação do mestre. Bastava que um de nós falasse na Rua do Riachuélo (é), para que o carioca nos emendasse, rindo:

 Riachuêlo, rapaz. É êlo, e, não, élo.

O butar, tão recifense, dito pelas melhores famílias, chamava a atenção. O Rèècife, que dizíamos com tanta propriedade, irritava os ouvidos sulinos:

 Rêêêcife, rapaz!

Discutíamos, às vezes:

 A letra é É, aberto; e não Ê, fechado.

Mas não adiantava. O pessoal ria. Mangava da gente. O remédio era disfarçar o sotaque. Esquecer o oxente, o bichinho, o danou-se, e aprender novas exclamações, como o pôxa!

Palavras de nossa estima foram substituídas. Quartinha virou moringa, apesar do protesto do Xandu:

 Moringa é jarro com asas. Estamos certos. Sem asas é quartinha.

Não imigramos, todavia, para modificar o Rio. Viemos ingressar na paisagem, e, em conseqüência, amar também a terra. Aderimos ao moringa. Nossa macaxeira virou aipim, o jerimum se transformou em abóbora; e casinha ganhou a forma pomposa toalete.

Por causa disso, no Aeroporto Santos Dumont, um industrial pernambucano, vendo que seu avião não saía, pois se achava em trânsito para S. Paulo, aproximou-se do balcão da companhia, para protestar, com a ficha de vôo na ponta dos dedos. E a recepcionista:

 Seu avião já se foi há mais de meia-hora.

 Não me chamaram, oxente! Fiquei o tempo todo ouvindo o alto-falante, bichinha.

 Chamamos as fichas cor de abóbora.

 A minha é cor de jerimum...

Anos depois, virou moda falar ao jeito nordestino. Até quem não era da terra fazia força para nos imitar. E usava nossos ditados: “Binóculo de pobre é ver de perto”, “Um gambá cheira o outro”, “Pintada que só rodapé de parede”, “Cansado que só charuto na boca de bêbedo”, “Feia como a moléééstia!” Mas já era tarde. Minha geração, pelo hábito, havia esquecido seu jeito de ser.

Há coisa de dois anos, voltei à gloriosa Cidade das Tabocas, em companhia do poeta Ghiaroni. Em quinze minutos de palestra com a minha gente, readquiri meu sotaque, aderi à ortoepia (como diria o Xandu) e bebi água de quartinha, comi macaxeira, fui à casinha, pedi a minha tia que butasse mais jerimum no meu prato, e, quando me disseram que a antiga namorada virou mulher-dama, lamentei, espantado:

 Oxente! Danou-se a bichinha?! Virge!

Ghiaroni, horas depois, observou:

 Você pegou o modo de falar.

 Peguei mesmo.

 Pensei que fosse para ser gentil com os seus parentes.

Não, Ghiaroni. Repito-lhe, agora, quando a saudade vem à flor, porque relembro meu chão. Repito-lhe, nesta manhã alegre em que o dia é claro, meus pássaros cantam na varandinha de pensar, e sinto aquela velha saudade de mim mesmo. Repito:

 Não, Ghiaroni. Eu, na realidade, sou assim.


(*) O mesmo que prosódia. Atualmente, usa-se os dois vocábulos à vontade: ortoépia ou ortoepia.

OUTRAS TELHAS

·      REFLEXÕES – Prosseguindo a publicação das obras completas de Matheus de Albuquerque, a Pongetti lançou As Belas Atitudes. Virge!!!...

·      POESIA – E David de Araújo publica sonetos também pela Pongetti, intitulados Primeiros Sonhos. Danou-se!!!...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1965) 

quarta-feira, 1 de março de 2023

RIO, CIDADE MARAVILHOSA

O “Douglas” preparou a descida, fez lá o que eles chamam de “problema” e montou na pista. Quando eu pensava que a pista ia acabar, o avião voltou, fez curvas e conseguimos pousar. Abriram-lhe a barriga e nós, os apêndices, descemos.

A moça bairrista suspirou:

– Graças a Deus, estamos, novamente, em São Paulo.

Ganhou sorriso de ratificação do pai, também bairrista, mas nascido em Juazeiro do Norte, de onde saiu com oito anos de idade, para crescer em Taubaté e vir a ser negociante num escritório da Avenida São João.

Livrei-me de todos e me enfiei num táxi. O motorista, filho legítimo do Brás, se pôs a vomitar queixas amargas contra a vida, enquanto não chegávamos à Avenida Ipiranga.

Nascido e criado em São Paulo, lamentou, sinceramente, que sua cidade só pensasse em crescer, mas esperava muito do Prefeito de então, o qual conhecia bem as necessidades da povo paulistano.

O sinal fechou:

– Cidade ideal para se morar é o Rio de Janeiro. O povo é bom, gentil, delicado. Um trocador do ônibus ou um motorista tratam os passageiros com amabilidade. Os choferes de táxis do Rio não rejeitam fregueses e há automóveis à disposição de todos, a qualquer hora do dia ou da noite.

O sinal abriu:

– No Rio não existe hora em que o trânsito esteja apertado. As autoridades fazem tudo para melhorar a vida da população. Nada falta. Os gêneros são mais baratos e ninguém pensa em roubar nos preços. Não há ladrões assaltando na via pública. Todos os crimes são descobertos, imediatamente, pela polícia.

Olhei para ele, espantado. Outro sinal fechou. Parou o carro:

– No Rio há grande número de escolas e hospitais, e tudo de graça para os mais necessitados.. Aluguel de casa é barato. Os apartamentos são amplos, confortáveis, arejados, claros. Há água à vontade.

O sinal abriu:

– Tudo isso por quê? Porque todo mundo trabalha. Ninguém anda vagabundeando. Nos dias úteis, os cinemas ficam às moscas. Há filas nas bibliotecas públicas. As livrarias são muitas e têm grandes lucros, porque a gente gosta de ler. Não há ruas esburacadas.

Caiu num buraco de rua, soltou um palavrão, cuspiu para fora:

– A Prefeitura tem verbas para gastar na conservação das ruas. Os políticos não fazem demagogia nem são os eternos caçadores de votos. Apesar de ficar à beira do mar, no Rio não se vende contrabando, porque todo mundo se respeita.

Avenida Ipiranga e desabafo final do motorista:

– Ai, ai! A vida no Rio é a melhor do mundo.

Parou o carro e perguntei:

– O senhor conhece o Rio?

 Não.

– – – – – – – – – – – –  

(Publicada inicialmente com o título “Depoimentos”, na seção Telhado de Vidro. Shopping News, Rio de Janeiro, 19 de maio de 1957. E, posteriormente, com modificações, nos seus livros de crônicas: Ah! Saudade Engraçada!.., editado pela Livraria São José, em 1962; e Telhado de Vidro, volume II, editado pela BRADIL, em 1967)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

DESPEDIDA

Nos fundos de minha morada, homens compraram três casas. Ficavam em grandes terrenos frondosamente arborizados. Andorinhas e borboletas e pombos eram a fauna matinal de meu recomeçar de todos os dias, na varandinha de pensar. E sempre fomos felizes, eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas, no azul das manhãs.

Tínhamos nossas mangueiras espessas, de troncos negros fincados na terra. Também nossos coqueiros, goiabeiras, pequena hortaliça. Havia ainda outras árvores, algumas até imponentes, mas eu, em meus vôos, em meu cantar, em minhas manhãs vadias, jamais me lembrei de identificá-las.

Compraram as casas, os moradores se mudaram e os homens chegaram para acabar com tudo. De início, o malabarismo de atirar telhas de mão em mão. Depois, as paredes tombaram. Vi sair a velha banheira. Não mais importou que o encerado do assoalho se expusesse à chuva, ao sol, ao sereno. O mural japonês, de mau-gosto, com um biombo, a gueixa, quimono, quiosque, arrozal na paisagem, tudo tombou na técnica engenhosa da demolição. É triste ver o fim das coisas!

Agora, chegou a vez das árvores. Três mangueiras não são mais nada. Alguns de nós, andorinhas, borboletas, pombos, já desaparecemos em busca de outros sítios, em vôos do nunca-mais, exilados da própria sorte, retirantes do espaço.

Nos três terrenos, agora transformados em um só, construirão o maior cinema da Zona Sul. Em nosso sítio – meu, dos pombos, das borboletas e andorinhas – verão as sardas de Van Johnson, o busto de Jayne Mansfield, a careca de Yul Brynner, a guitarra cambaia de Elvis Presley, as sobrancelhas pintadas de Tony Curtis. É a civilização. Nós – eu, andorinhas, borboletas, e pombos – somos os brutos. E falta pouco para sermos enxotados de vez.

Resta um coqueiro. Cinco mangueiras ainda não foram executadas. Poucas folhas, em vista do que era, ainda não deixaram despido, totalmente, o chão.

Além do cinema, subirão aos céus doze andares de consultórios, escritórios, habitações, “garçonnières”. Mais uma babel à Copacabana.

Antes disso, porém, nos iremos de vez – eu, os pombos, as borboletas, as andorinhas. Só esperamos assistir ao último suspiro do coqueiro e das cinco mangueiras. Dentro de poucos dias, portanto, nós, os remanescentes, também seremos retirantes do espaço, exilados da sorte, em vôos do nunca-mais.

Onde nascer majestoso edifício, sobre um cinema, aí, porém, haverá um vazio, o meu vazio, das andorinhas, das borboletas e pombos. O vazio de meu recomeçar de todos os dias, no azul das manhãs vadias.

E, desde já, adeus.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 24 de março de 1963)


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

DA NECESSIDADE DE ESCREVER

LEITORA amiga, escrever não é “necessidade espiritual”; para mim, é estomacal. Ah, estiva, madama Sou dos fregueses mais assíduos das fitas de máquina, e o telecoteco desta “Olivetti” que lhe fala é o “leitmotiv” mais constante das 24 horas diárias de meus vizinhos – bons e pacientes vizinhos, por sinal.

Tenho boné e calção que irritam os moradores das janelas fronteiras. Olham de longe o doméstico cercado de livros pelos sete lados, ora indo à varanda para pescar assunto no espaço, ora voltando à mesa cara corrigir matérias encerradas, e dizem lá com seus botões:

– Grande malandro: Sempre em casa!

Respondo, com meu calção e meu boné:

– Homem feliz: Saiu cedo, abriu loja, vendeu, recebeu, fechou a loja e já está na janela, depois do banho da tarde, chupando seu charuto, fazendo hora para o cinema!

Invejo os que têm ofício, dona, Duro é não fazer mais nada, senão o que a senhora está vendo e meus vizinhos estão ouvindo.

O primeiro sonho foi ser veterano da Guerra do Paraguai. Nos meus oito anos, achava isso lindo. A expressão me soava divinamente: “veterano da Guerra do Paraguai”. Porque conheci alguns e eram muito respeitados...

Depois, achei que condutor de bonde seria melhor. Porque a vida me mostrou que ele era o único a receber. E não entendia o motivo por que passava troco...

Mas o tempo foi desfazendo ilusões. Foi comendo sonhos. A estória se parece com a do cidadão que perguntou ao canibal:

– Como foi que o senhor ficou antropófago?

– Comecei roendo as unhas.

Eu comecei escrevendo cartas de pedir emprego...

Agora, a senhora é quem me manda carta. Quer que eu responda com outra, num dia de folga. Não posso. Seria o mesmo que motorneiro sair, no dia de folga, para passear de bonde...

Quanto à sua mania de escrever por “necessidade espiritual”, trate de desistir. Consulte psicanalista. Porque é mal. Acaba viciando. A necessidade pode transformar-se em estomacal.

E não desejo isso a ninguém, nem mesmo ao Julio Tavares (*), que não sabe escrever.


(*) NotaPseudônimo utilizado pelo Carlos Lacerda.

OUTRAS TELHAS

·      BOSSA-NOVA – Pedem alguns leitores opinião sobre a bossa-nova e seu respectivo fracasso. Gosto de ambas as coisas – isto é: do fracasso e da bossa. O gênero não é nosso. De brasileiro, não tem nem o João Gilberto. Reparem no baterista da bossa-nova: quando lhe dão um breque, ele faz “jazz”, mascando chicles, e. depois, volta ao ritmo anterior, que, por sinal, é muito fraquinho, com aquela bandinha de sempre. Ouçam, para exemplo, a gravação que Luciano Perrone, o maior baterista realmente brasileiro, fez do samba “Na Pavuna”, de Ary Barroso. Ele dá sete breques de samba diferentes, todos realmente verde-amarelo. Esse mesmo Ari Barroso diz, com muito acerto, que música brasileira tem ritmo por si só. Não precisa de instrumento de percussão, para definir-se. Qualquer um pode verificar isso, com facilidade, solfejando, por exemplo, o “Falsa Baiana”, do saudoso Geraldo Pereira. Para demonstrar mais, basta ver que Radamés Gnattali está inteiramente por fora da bossa-nova. Por quê? Primeiro, porque é Músico (“M” Grande, gente, que não é favor); segundo, porque só entra em jogadas genuinamente brasileiras. É o mais nacionalista de nossos grande compositores. Qualquer de seus concertos tem tanta alma do Brasil que emocionaria só por isso. A argumentação, porém, não quer dizer que eu não aceite a bossa-nova. Gosto, mas como gosto de tango, bolero, rumba, e, com maior propriedade, de “jazz”. Enfim, o fracasso da bossa-nova nos Estados Unidos, não é nosso. É deles...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1962)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

PONTE DA BOA-VISTA

A enchente ameaçou a velha Ponte da Boa-Vista. O Capibaribe também se zanga. rio e ponte que pertencem à paisagem de minha infância – ponte e rio que são saudade.

Volto ao passado, mergulho em lembranças, quando vou a pé pelas ruas do Recife. Revejo os que se foram para sempre. Sinto saudade de mim mesmo. E as velhas pontes – Maurício de Nassau, Buarque de Macedo, a Limoeiro, a Santa Isabel, Torre, Madalena – são mirantes de minha paisagem. Sobretudo, a Boa-Vista. Com ela, a Giratória.

Padre Félix acabou descobrindo para onde íamos, nos dias de aula de matemática, quando o prof. José Miranda, boníssimo, nos ensinava a achar logaritmos na tábua de Callet. Já existiam alcagüetes, embora em menor quantidade, naqueles tempos...

Íamos para a Ponte Giratória, pescar. A ponte se abria, girando a parte do centro, para dar passagem às embarcações mais altas, que vinham atracar no Cais do Abacaxi, junto à praça 17. Os rebocadores dobravam as chaminés e não incomodavam a ponte; as barcaças, porém, só entravam no rio quando ela deixava. E ali ficávamos, achando peixes, até o professor Miranda acabar de achar os logaritmos...

Da ponte de Madalena pulei de cabeça. Sob a de Limoeiro peguei caranguejo. Da Ilha do Retiro à Ponte da Boa-Vista (calculamos cinco mil metros) já vim nadando. Perto da Ponte da Capunga levei tombo da motocicleta. Na da Torre namorei lavadeiras que nos davam atenção e carícias, porque íamos mal vestidos, disfarçados de trabalhadores, e elas desconfiavam de que éramos estudantes, da pensão do Dérbi...

Teria muito o que contar de cada ponte do Recife, porque a cidade as possui em quantidade, cada uma com sua história, com vida própria; há as que trabalham mais, há as menos ocupadas; as que se transformam em atrativos noturnos e as que são perigosas à noite; boêmias e operárias; familiares e sem preconceitos. Andei por todas. Conheço-as palmo a palmo.

Quando a Casa da Detenção, na ditadura do Estado Novo, se transformou em Presídio Especial, as mães dos detidos descobriram que eles passavam para o banho, todos os dias, às dez horas. Do alto da Ponte Velha viam os filhos e acenavam lenços brancos. Eles respondiam com as toalhas. Mas o chefe político de Polícia soube da “subversão”, e, na hora do banho dos presos, mandou soldados com metralhadoras, para o alto da ponte, com ordem de atirar nas mães.

Agora, a Ponte da Boa-Vista vai abandonar a paisagem. O Capibaribe andou muito zangado. A velha ponte – de 1876, se não estou enganado – não teve mais pernas para resistir.

Ficará em livros, em fotografias, será lembrança. No local foi construída a segunda ponte do Recife. A primeira, a Maurício de Nassau, vem dos tempos do domínio holandês; a segunda ligou a Ilha de Santo Antônio ao Bairro da Boa-Vista – melhor dizendo: a Rua Nova à Rua da Imperatriz.

Quando surgiu, era de madeira. Tinha banquinhos públicos, para as reuniões sociais. Nos dias úteis, senhores preocupados ali se sentavam e discutiam política, negócios, a situação do País, a crise econômica, a carestia da vida. Nos domingos, à tarde, as famílias vinham ver as modas e opinar sobre os últimos penteados parisienses. À noite, em qualquer dia, era o caminho dos amores fáceis, dos boêmios, bêbedos – então, a Ponte da Boa-Vista ofendia em cheio a sociedade...

Os anos acabaram com tudo isso. As maxambombas eliminaram os bondinhos de burros, as seges, os ônibus. As pontes de madeira foram substituídas por pontes de ferro, para as maxambombas.  A da Boa-Vista acompanhou o progresso. E serviu até aos bondes da Tramways.

Com ela se vão meus passos vadios, de uma fase de vida despreocupada, feliz. Aquela alegria de jovem, sonhos para o futuro, sonhos que se não realizaram porque o futuro também já está virando passado, um punhado de crenças e de ilusões vão ser carregados, também, pelo Capibaribe, junto com a Ponte da Boa-Vista, a minha ponte, passagem obrigatória de minha infância, pedaço da paisagem que tanto amei.

É mais um pouco de mim mesmo que se vai para sempre. 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1965)

domingo, 26 de dezembro de 2021

NATAL DAS CRIANÇAS

VEJO de minha varandinha de pensar os novos brinquedos, trazidos pelo Natal para as crianças vizinhas. Vejo o menino que realizou o sonho da bicicleta, aquele sonho que me perseguiu durante tantos anos – ah, o lado triste de se ser menino pobre! Vejo o par de patins, a bola de futebol, a roupa de astronauta, o carro de bombeiros. E vejo o menino triste na janela, por trás da grade de segurança, o menino-passarinho na gaiola do apartamento, sem carro de bombeiros, sem roupa de astronauta, sem bola de futebol, sem o par de patins. Muito menos, a bicicleta Apenas, a camisa do Flamengo, para se ver no espelho e sonhar Manicera, sonhar Fio, sonhar Carlinhos, Doval. Dionísio.

Cada pai dá ao filho aquilo que mais desejou. Comprei logo a bicicleta para o meu. Muitos lamentam:

– No meu tempo, não havia esse brinquedinho tão bom!

A maioria, então, volta à infância. Nos dias da folga que se seguem ao do Natal, há bancários a passear de bicicleta, comerciantes patinando, industriários batendo bola, jornalistas vestidos de astronautas (Por sinal, a roupa ideal para se exercer essa difícil profissão!...) e advogados puxando carro de bombeiros Mas a volta a infância é mais volta nos brinquedos caros. O homem faz o sacrifício e adquire o trenzinho elétrico. É completo: trilhos para todos os lados, estações, túneis, chaves para a mudança de linha, sinalizações, vagões dos mais diversos tipos. E ele diz ao menino:

– Papai Noel lhe trouxe este trem elétrico. Amanhã, papaizinho vai armar para você e mostrar como funciona.

A mãe reclama:

– Não temos batedeira, não temos liquidificador, e você gasta esse dinheirão num brinquedo que se quebra à toa. E ainda vai pagar energia à Light.

– Dou a meu filho o que não tive na infância.

Mentira. Dá a si próprio o que desejava na idade do filho. No dia seguinte: prova isso. O comboio toma conta da sala. Passa pelo túnel embaixo da ponta do tapete e vai parar na estação junto ao pé da mesinha de centro. Pega o desvio por trás da poltrona, atravessa o viaduto que, para ser armado, teve de levar para o chão quatro volumes do dicionário de Caldas Aulete, e vai fazer a curva no lado da televisão. O menino se senta e fica vendo a composição, de luz acesa, rodar na sala. O pai brinca. Mais tarde, ele também quer comandar o trenzinho, também quer brincar. E o pai:

– Não, porque você vai quebrar isso custou muito dinheiro.

TELHAS SOLTAS 

·      DRUMMOND – Meu melhor presente de Natal foi o cartão de meu poeta, de meu Carlos Drummond de Andrade. Sabeis que uso o meu para os preferidos. Digo meu Rubem Braga, meu Jorge Amado, minha Rachel de Queiroz – uso poucos, porém, sinceros meus. A propósito das Memórias do Café Nice (Subterrâneos da Música Popular o da Vida Boêmia do Rio de Janeiro), editadas pela Conquista, meu Drummond me chama de meu (E a modéstia que se dane!) e me envia o seguinte presente de Natal: “Passei esses últimos dias em companhia de Você e do alegre pessoal da música, no Café Nice. Uma delícia. As figuras humanas, o segredo das jogadas, o ambiente reconstituído por quem viveu realmente uma época importante na história de nossa música popular, tudo isso dá valor documental a seu livro, que agrada ainda pelo bom humor. Se não pude freqüentar os Tenentes do Diabo (e não foi por falta de vontade, pois desde criança o nome desse clube me invocava muito mais que os das outras “grandes sociedades”), pelo menos andei pelo Nice na boa companhia de Você. Outra coisa: que monte de apelidos ganhei para a minha coleção, no volume! O abraço afetuoso do seu (a) Carlos Drummond de Andrade”. 

ÁGUA-FURTADA 

O TELHADO recebeu, agradece e retribui votos de Boas Festas dos seguintes queridos amigos: Mauro Almeida (Rede Globo de Televisão, Canal 12, Belo Horizonte); Felinto Rodrigues Neto (diretor do Serviço Nacional de Teatro); atriz Maria Pompeu; Rodolpho Pongetti Editora Pongetti); jornalista Eli Halfoun (Canal 9); cantora Ivete Garcia; jornalista Cristóvão Gabinio (Instituto de Pesos e Medidas); Profª. Maria José Alvarez (Serviço de Cinema Educativo e Cultural); poeta Walmir Ayala; Raul e Teixeirinha (Restaurante Bucsky e Churrascaria Carreta); jornalista Roberto Ruiz e família; violonista Laurindo Almeida (Califórnia, EUA); Ministro e Sra. Eraldo Gueiros Leite; Hélio Néri e família; jornalista Luciano dos Anjos; jornalista Cely de Ornellas Rezende (Publinac); compositor Hélio Guimarães; Marlah e Mário Cysneiros (diretor das Casas Pernambucanas); pianista Sônia Maria Vieira; escritor Daniel Rocha (diretor da SBAT); baterista Luciano Perrone; Sra. e Sr. Armando Ribas Leitão; Colombo, Noca e Edir (Trio ABC da Portela); cantora Alzirinha Camargo; Capitão José Maria Pereira (QG do II Exército, S.  Paulo); economista José Maria Aragão (BID, Buenos Aires); Prof., Murilo Guedes (Scripta); ator Paulo Gracindo e família; Lourdes Amaral (Germaine Montell); Dr. Maurício B. Guimarães, médico, e família; Coronel Thales Faria Brenner e família; Osíris Borges de Medeiros e família; Hélio Arantes (Restaurante Ariston); pintora e futura arquiteta Mônica Azambuja; Sra. Marita Cais de Oliveira; Prof. Aloísio Guerra (Instituto do Pequeno Príncipe, Recife); Dr. Isaac Dobbin, dentista; locutor Haroldo de Andrade; jornalista Oberon Bastos (Presidente da ABRAJET); Coronel Eduardo Falcão (S Paulo); Lafuentes & Lemes; jornalista Braga Filho (Rádio Globo); editor Sebastião Hersen (Conquista); jornalista Marcial Dias Pequeno; atriz Dirce Belmont; cantora Eliana Pittman; Ismênia Dantas (Livraria José Olímpio); escritor Umberto Peregrino (Instituto Nacional do Livro); pintor Ely Braga; radialista Luthero Toledo e família (Brasília); compositor Francisco Correia da Silva e família; Adel Youssed (Delegação da Liga dos Estados Árabes no Brasil), o jornalista Sérgio Macedo. 

• Nestor de Holanda 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1970)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

45 DEZEMBROS

VI, nesta página, há dias, Cláudia Cardinale, Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot e Sofia Loren, em fotos diversas. Todas me agradaram, de modo geral. Não sou muito exigente.

Conheço um pouco de italiano, embora com influência do calabrês de meu avô Gagliardi (Galhardo para os íntimos) e herdei qualquer coisa do francês de minha madrinha. Anne Marie Conrad. Apesar do carregado sotaque antonense, que me acompanha em qualquer idioma, pois até meu russo sai à nossa moda nordestina, creio que me entenderia com as italianas e com a francesa. Trago de andanças pelo mundo certa experiência de entrevistas desse gênero...

Claudia Cardinale, Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot e Sophia Loren (1966)

Aos 45 dezembros, as fotos despertam terrível saudade de mim mesmo Não se assuste, leitor: ligo os fatos, porque, há trinta anos atrás, eu estaria recortando as poses para a parede de meu quarto. E viveria instantes como o da discussão com Lana Turner, um ano mais velha do que eu. Vi numa revista reportagem ofensiva à minha pessoa: “Lana Turner Não Conseguiu Ser Amada”. Irritei-me. Atirei a revista a um canto. Aproximei-me da inocente loura, com o dedo em riste. Ela fingiu indiferença, colada atrás da porta. Gritei-lhe na cara:

– Mentirosa! Que é que estou fazendo aqui?!

Ingrid Bergman ouviu. Yvonne de Carlo também não gostou. Lili Palmer ficou sentida. Susan Hayward, Anne Baxter e Michèle Morgan me pareceram profundamente magoadas. Embaraçado, saí, batendo a porta. E Marlene perguntou, assustada:

– Que aconteceu?

Daquela vez, porém, não foi a Dietrich: foi Marlene, a arrumadeira. Mesmo assim, respondi:

– O vento bateu a porta.

Imaginava o mesmo Otelo, o mesmo arlequim ou o mesmo pierrô, aos 45 anos de idade. O telefone tilintando:

– Alô. Iolando. É a Cardinale...

Marlene a dar recados:

– A Lollo quer oferecer-lhe um jantar de dois, em seu apartamento. Esteve aqui a Bardot, mas não pôde esperar. Disse que voltará, E a Loren se acha na sala, ansiosa.

– Obrigado, Marlene.

A arrumadeira, com jeito canalha:

– Três italianas e uma francesa, hein?! É francesa demais para você.

– Deixe comigo, Marlene. Sei defender-me. Não se esqueça de que nasci em Vitória de Santo Antão.

A 1º de dezembro de 1966, tudo tão diferente! Aqui estou com dona Kezia, o maestro Nestorzinho, a pianista Maria Marta. Os amigos telefonam. Alguns vêm beber de meu uísque. Telegramas. Fecho os olhos. Vejo o retrato de Lana Turner de cabeça para baixo depois de nossa briga. Corto o bolo. Sorrio de minha infância. E digo a todos:

– Eu não pensava, aos 15 anos, que também isto de bom me pudesse acontecer!

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1966)