quinta-feira, 1 de novembro de 2018

MARIDOS

Há dois tipos de maridos: o dos que nasceram para a função e os que a exercem por dever, sem a menor vocação doméstica. Os deste tipo não sabem fazer compras para o lar, ignoram todos os preços de gêneros de primeira necessidade, deixam o banheiro molhado, pagam qualquer conserto na casa, jamais empurraram um carrinho de bebê.
O outro tipo, porém, é o ideal. Marido por vocação, por índole, que trouxe do berço o amor à toca e às prendas domésticas, deve merecer a preferência das moçoilas casadouras. Cabe-lhe a carapuça de príncipe encantado. É o marido mesmo.
Leva a patroa, aos sábados, ao cinema, para um filme de amor. Vai à feira, carrega bolsas de compras, escolhe os melhores tomates, discute sobre a carne-seca, xinga o vendedor de frutas. Trata das plantas, cria passarinhos, dá banho nos cachorros. Nos dias de faxina, veste um calção, limpa as vidraças, encera o assoalho, lava banheiro e cozinha. Pela manhã, faz o café. Durante a noite, muda as fraldas do caçula e verifica se os mais velhos estão cobertos. Aos domingos, mete-se na cozinha e faz a peixada, a feijoada, o cozido, e é especialista em saladas e batidas. Quando o filho pede um carrinho, ele não compra; vai para os fundos do quintal, desmancha um caixão e faz o carrinho. Pinta a casa, conserta as dobradiças das portas, enverniza os móveis, fabrica os armários embutidos, levanta muros, cola os ladrilhos, recompõe as vidraças, varre o quintal, arma a antena de televisão, substitui telhas quebradas, contrata empregada, corta as unhas dos meninos, aplica injeções, muda lâmpadas, prega as cortinas, verifica os vazamentos das pias, desentope os esgotos, dedetiza os ralos, funciona como o presidente da Sociedade dos Amigos do Bairro e como diretor social do clube, no qual exerce um mundo de atividades, inclusive o de treinador do quadro de futebol.
Este tipo de marido, muito comum em todos os pontos da cidade, quase sempre é amanuense, e, como tal, conhece os códigos de vencimentos e vantagens, sabe de cor os direitos e atrasados a receber, discute, como ninguém, assuntos ligados a essas questões, usando a terminologia específica: reajustamento, adicionais, enquadramento, paridade, níveis, abonos, salário-família, aposentadoria, móvel. Somando tudo isso, ganha bem (ele acha que sempre ganha mal), tem casa própria, sabe como adquirir tudo mais barato e melhor, faz economias excepcionais, mas não enriquece. Quem enriquece é o outro tipo de marido, o que não sabe coisa alguma, jamais fez compras, ignora todos os preços, deixa o banheiro molhado, paga qualquer conserto na casa e jamais empurrou o carrinho do bebê, porque passa os dias na rua, ganhando dinheiro...
Enfim, conto pequenino episódio, apenas para que o leitor avalie a que extremos vai a habilidade do marido por vocação. Domingo último, um me disse:
- A válvula do banheiro estava vazando. Minha mulher chamou o bombeiro e este cobrou dois mil cruzeiros pelo reparo. Protestei. Mandei que fosse embora, porque, no domingo, eu consertaria a válvula.
Sorriu feliz e continuou:
- Hoje cedo, foi a primeira coisa que fiz. Abri a válvula e verifiquei que, apenas, a mola estava fraca. Sabe como resolvi a situação?
- Vou saber agora.
- Coloquei uma prata de cruzeiro lá dentro, calçando a mola, e a válvula passou a funcionar maravilhosamente.
Depois do ar de vitória:
- Não pagando os dois mil ao bombeiro, economizei mil novecentos e noventa e nove cruzeiros.
E me admirei de um detalhe importante: onde teria aquele marido conseguido, a esta altura dos acontecimentos, uma prata de cruzeiro, objeto tão raro nos nossos dias?!...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1964)

Nestor de Holanda em seu escritório (1968)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

AMIGOS

ENEIDA me diz que amigo é aquele que avisa quando a gente está com mau hálito. De minha parte, embora aceite essa definição, tenho outra: amigo é o que perdoa os defeitos da gente. Quem não perdoa defeitos é inimigo...
Xandu, latinista primeiro e último de Vitória de Santo Antão, dizia sempre:
Amicus certus in re incerta cérnitur.
Dizia e provava:
– “O amigo verdadeiro se conhece na ocasião incerta.”
Amigo é o que vai consultar-se com o outro, quando o outro é médico, e paga a consulta. É o que constitui o advogado e paga os honorários. É o que apanha algum dinheiro emprestado e paga. É o que vai à livraria, compra o livro da gente e traz (ou não traz) o volume, pedindo:
– Pode me dar seu autógrafo?
Porque o médico vive das consultas O advogado das causas. Quem faz livro talvez seja porque não saiba dar consultas ou advogar; talvez seja porque não saiba fazer mais nada. Em conseqüência, mantém-se graças aos livros. Em outras palavras: é o abnegado que tem a coragem de viver de livros num país em que se ler tão pouco...
Mas nem todos os amigos entendem isso. E o médico ao qual o sujeito que escreve paga consultas exige:
– Estou esperando que você me dê o seu livro.
Também o advogado que cobra honorários:
– Quando é que você vai me oferecer seu último livro?
Há três maneiras bem usuais de pedirem os volumes que escrevemos para viver. Uma delas é a pergunta:
– Onde está à venda seu livro?
Respondo sempre:
– Em qualquer açougue ou padaria...
Outra:
– Estou louco para ler seu último trabalho.
E a terceira:
– Se eu comprar seu livro, você o autografa?
Nenhum dos que pedem se lembra de que as editoras organizadas cumprem seu contrato com o autor. Pagam os direitos autorais e lhe dão vinte volumes. O autor assina os exemplares que vão para os críticos e noticiaristas, e, depois disso, qualquer outro que deseje será abatido em sua conta. Imaginai, pois, este filho humilde de Vitória de Santo Antão a distribuir qualquer edição inicial de cinco mil exemplares com os amigos que perguntam:
– Onde está à venda seu livro?
Ou:
– Estou louco para ler seu último trabalho.
Ou, ainda:
– Se eu comprar seu livro, você o autografa?
Terá de pagar três ou quatro edições ao editor. E ainda deixará os verdadeiros amigos, aqueles que dizem quando a gente está com mau hálito, aqueles que perdoam os defeitos da gente – e ainda deixará os verdadeiros amigos sem encontrar os livros para comprar.

TELHAS-VÃS

·      POEMAS – Os amigos de Santos Morais devem comprar seus Poemas do Hóspede. É o poeta de A Nuvem de Fogo e Tempo e Espuma. O romancista de Menino João e Os Filhos do Asfalto. O contista de O Caçador de Borboleta. O teatrólogo de Rei Zumbi e A Terra Sangra. O ensaísta de Dois Cientistas (Rocha Lima e Gaspar Viana). Antônio Santos Morais, baiano de Casa Nova, é detentor de vários prêmios: o de romance do Instituto Nacional do Livro, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras e o de teatro também da Academia Insisto: seus amigos devem comprar Poemas do Hóspede, coletânea recém-saída pela Editora Luan.

·      CRÔNICAS – A Editora Sabiá acaba de lançar a 4ª edição de A Borboleta Amarela e a 5ª edição de Ai de ti, Copacabana!, dois volumes de crônicas de Rubem Braga. Chegam-me os exemplares com o amabilíssimo cartão do Braga: “Você já deve ter esses livros, por isso mando só autografados e você poderá dar a alguém de presente de Natal”. Passou o Natal e não dei os livros do Braga a ninguém. Não tiro de seus amigos o direito e a alegria de comprá-los. Não digo que Rubem Braga é o nosso maior cronista, porque odeio essa coisa de “o melhor” ou e “o maior”. Digo, todavia, sem medo de errar, que qualquer cronista tem de rebolar muito para equiparar-se ao Braga. Logo, comprar seus livros não é favor; é uma obrigação até dos que, porventura, não sejam seus amigos... (E outra coisa, meu Braga: fui às livrarias, comprei livros seus e os dei de presente, pelo Natal, porque, no Natal, não dou gravatas de borboletas nem vidrinhos de perfume; dou bons livros!)

ÁGUA-FURTADA

POR FALAR em bons livros e na editora Sabiá, Fernando Sabino, outro cronista que não deve ser classificado como “o melhor” ou “o maior”, porque isso é propaganda de gasolina, lança a 5ª edição da Medo em Nova Iorque – a Cidade Vazia. Isso mostra que seus amigos compraram seus livros, no que fizeram muito bem. E mostra que outros amigos devem fazer o mesmo antes que a 5ª se esgote e tenham de esperar pela 6ª, o que acontecerá, fatalmente. E GABRIEL Garcia Marquez, como sabeis, é o autor de Cem Anos de Solidão, dos melhores romances saídos, nos últimos anos, em todo o mundo. E, agora, a Sabiá lança a novela Ninguém Escreve ao Coronel, do notável colombiano. Tradução de Virgínia Wey. Capa e desenhos de Carybé.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1970)

Alex Viany, Eneida e Nestor de Holanda (Rio de Janeiro, 1961)
(Obs.: Foto tirada durante o Programa de Haroldo Costa na TV-Continental)