domingo, 26 de dezembro de 2021

NATAL DAS CRIANÇAS

VEJO de minha varandinha de pensar os novos brinquedos, trazidos pelo Natal para as crianças vizinhas. Vejo o menino que realizou o sonho da bicicleta, aquele sonho que me perseguiu durante tantos anos – ah, o lado triste de se ser menino pobre! Vejo o par de patins, a bola de futebol, a roupa de astronauta, o carro de bombeiros. E vejo o menino triste na janela, por trás da grade de segurança, o menino-passarinho na gaiola do apartamento, sem carro de bombeiros, sem roupa de astronauta, sem bola de futebol, sem o par de patins. Muito menos, a bicicleta Apenas, a camisa do Flamengo, para se ver no espelho e sonhar Manicera, sonhar Fio, sonhar Carlinhos, Doval. Dionísio.

Cada pai dá ao filho aquilo que mais desejou. Comprei logo a bicicleta para o meu. Muitos lamentam:

– No meu tempo, não havia esse brinquedinho tão bom!

A maioria, então, volta à infância. Nos dias da folga que se seguem ao do Natal, há bancários a passear de bicicleta, comerciantes patinando, industriários batendo bola, jornalistas vestidos de astronautas (Por sinal, a roupa ideal para se exercer essa difícil profissão!...) e advogados puxando carro de bombeiros Mas a volta a infância é mais volta nos brinquedos caros. O homem faz o sacrifício e adquire o trenzinho elétrico. É completo: trilhos para todos os lados, estações, túneis, chaves para a mudança de linha, sinalizações, vagões dos mais diversos tipos. E ele diz ao menino:

– Papai Noel lhe trouxe este trem elétrico. Amanhã, papaizinho vai armar para você e mostrar como funciona.

A mãe reclama:

– Não temos batedeira, não temos liquidificador, e você gasta esse dinheirão num brinquedo que se quebra à toa. E ainda vai pagar energia à Light.

– Dou a meu filho o que não tive na infância.

Mentira. Dá a si próprio o que desejava na idade do filho. No dia seguinte: prova isso. O comboio toma conta da sala. Passa pelo túnel embaixo da ponta do tapete e vai parar na estação junto ao pé da mesinha de centro. Pega o desvio por trás da poltrona, atravessa o viaduto que, para ser armado, teve de levar para o chão quatro volumes do dicionário de Caldas Aulete, e vai fazer a curva no lado da televisão. O menino se senta e fica vendo a composição, de luz acesa, rodar na sala. O pai brinca. Mais tarde, ele também quer comandar o trenzinho, também quer brincar. E o pai:

– Não, porque você vai quebrar isso custou muito dinheiro.

TELHAS SOLTAS 

·      DRUMMOND – Meu melhor presente de Natal foi o cartão de meu poeta, de meu Carlos Drummond de Andrade. Sabeis que uso o meu para os preferidos. Digo meu Rubem Braga, meu Jorge Amado, minha Rachel de Queiroz – uso poucos, porém, sinceros meus. A propósito das Memórias do Café Nice (Subterrâneos da Música Popular o da Vida Boêmia do Rio de Janeiro), editadas pela Conquista, meu Drummond me chama de meu (E a modéstia que se dane!) e me envia o seguinte presente de Natal: “Passei esses últimos dias em companhia de Você e do alegre pessoal da música, no Café Nice. Uma delícia. As figuras humanas, o segredo das jogadas, o ambiente reconstituído por quem viveu realmente uma época importante na história de nossa música popular, tudo isso dá valor documental a seu livro, que agrada ainda pelo bom humor. Se não pude freqüentar os Tenentes do Diabo (e não foi por falta de vontade, pois desde criança o nome desse clube me invocava muito mais que os das outras “grandes sociedades”), pelo menos andei pelo Nice na boa companhia de Você. Outra coisa: que monte de apelidos ganhei para a minha coleção, no volume! O abraço afetuoso do seu (a) Carlos Drummond de Andrade”. 

ÁGUA-FURTADA 

O TELHADO recebeu, agradece e retribui votos de Boas Festas dos seguintes queridos amigos: Mauro Almeida (Rede Globo de Televisão, Canal 12, Belo Horizonte); Felinto Rodrigues Neto (diretor do Serviço Nacional de Teatro); atriz Maria Pompeu; Rodolpho Pongetti Editora Pongetti); jornalista Eli Halfoun (Canal 9); cantora Ivete Garcia; jornalista Cristóvão Gabinio (Instituto de Pesos e Medidas); Profª. Maria José Alvarez (Serviço de Cinema Educativo e Cultural); poeta Walmir Ayala; Raul e Teixeirinha (Restaurante Bucsky e Churrascaria Carreta); jornalista Roberto Ruiz e família; violonista Laurindo Almeida (Califórnia, EUA); Ministro e Sra. Eraldo Gueiros Leite; Hélio Néri e família; jornalista Luciano dos Anjos; jornalista Cely de Ornellas Rezende (Publinac); compositor Hélio Guimarães; Marlah e Mário Cysneiros (diretor das Casas Pernambucanas); pianista Sônia Maria Vieira; escritor Daniel Rocha (diretor da SBAT); baterista Luciano Perrone; Sra. e Sr. Armando Ribas Leitão; Colombo, Noca e Edir (Trio ABC da Portela); cantora Alzirinha Camargo; Capitão José Maria Pereira (QG do II Exército, S.  Paulo); economista José Maria Aragão (BID, Buenos Aires); Prof., Murilo Guedes (Scripta); ator Paulo Gracindo e família; Lourdes Amaral (Germaine Montell); Dr. Maurício B. Guimarães, médico, e família; Coronel Thales Faria Brenner e família; Osíris Borges de Medeiros e família; Hélio Arantes (Restaurante Ariston); pintora e futura arquiteta Mônica Azambuja; Sra. Marita Cais de Oliveira; Prof. Aloísio Guerra (Instituto do Pequeno Príncipe, Recife); Dr. Isaac Dobbin, dentista; locutor Haroldo de Andrade; jornalista Oberon Bastos (Presidente da ABRAJET); Coronel Eduardo Falcão (S Paulo); Lafuentes & Lemes; jornalista Braga Filho (Rádio Globo); editor Sebastião Hersen (Conquista); jornalista Marcial Dias Pequeno; atriz Dirce Belmont; cantora Eliana Pittman; Ismênia Dantas (Livraria José Olímpio); escritor Umberto Peregrino (Instituto Nacional do Livro); pintor Ely Braga; radialista Luthero Toledo e família (Brasília); compositor Francisco Correia da Silva e família; Adel Youssed (Delegação da Liga dos Estados Árabes no Brasil), o jornalista Sérgio Macedo. 

• Nestor de Holanda 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1970)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

45 DEZEMBROS

VI, nesta página, há dias, Cláudia Cardinale, Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot e Sofia Loren, em fotos diversas. Todas me agradaram, de modo geral. Não sou muito exigente.

Conheço um pouco de italiano, embora com influência do calabrês de meu avô Gagliardi (Galhardo para os íntimos) e herdei qualquer coisa do francês de minha madrinha. Anne Marie Conrad. Apesar do carregado sotaque antonense, que me acompanha em qualquer idioma, pois até meu russo sai à nossa moda nordestina, creio que me entenderia com as italianas e com a francesa. Trago de andanças pelo mundo certa experiência de entrevistas desse gênero...

Claudia Cardinale, Gina Lollobrigida, Brigitte Bardot e Sophia Loren (1966)

Aos 45 dezembros, as fotos despertam terrível saudade de mim mesmo Não se assuste, leitor: ligo os fatos, porque, há trinta anos atrás, eu estaria recortando as poses para a parede de meu quarto. E viveria instantes como o da discussão com Lana Turner, um ano mais velha do que eu. Vi numa revista reportagem ofensiva à minha pessoa: “Lana Turner Não Conseguiu Ser Amada”. Irritei-me. Atirei a revista a um canto. Aproximei-me da inocente loura, com o dedo em riste. Ela fingiu indiferença, colada atrás da porta. Gritei-lhe na cara:

– Mentirosa! Que é que estou fazendo aqui?!

Ingrid Bergman ouviu. Yvonne de Carlo também não gostou. Lili Palmer ficou sentida. Susan Hayward, Anne Baxter e Michèle Morgan me pareceram profundamente magoadas. Embaraçado, saí, batendo a porta. E Marlene perguntou, assustada:

– Que aconteceu?

Daquela vez, porém, não foi a Dietrich: foi Marlene, a arrumadeira. Mesmo assim, respondi:

– O vento bateu a porta.

Imaginava o mesmo Otelo, o mesmo arlequim ou o mesmo pierrô, aos 45 anos de idade. O telefone tilintando:

– Alô. Iolando. É a Cardinale...

Marlene a dar recados:

– A Lollo quer oferecer-lhe um jantar de dois, em seu apartamento. Esteve aqui a Bardot, mas não pôde esperar. Disse que voltará, E a Loren se acha na sala, ansiosa.

– Obrigado, Marlene.

A arrumadeira, com jeito canalha:

– Três italianas e uma francesa, hein?! É francesa demais para você.

– Deixe comigo, Marlene. Sei defender-me. Não se esqueça de que nasci em Vitória de Santo Antão.

A 1º de dezembro de 1966, tudo tão diferente! Aqui estou com dona Kezia, o maestro Nestorzinho, a pianista Maria Marta. Os amigos telefonam. Alguns vêm beber de meu uísque. Telegramas. Fecho os olhos. Vejo o retrato de Lana Turner de cabeça para baixo depois de nossa briga. Corto o bolo. Sorrio de minha infância. E digo a todos:

– Eu não pensava, aos 15 anos, que também isto de bom me pudesse acontecer!

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1966)

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

NO TEMPO DO BARATO

NÃO SOU saudosista. Já disse muitas vezes que odeio a frase “Bom era antigamente”. Antigamente, não havia penicilina, avião de jato, televisão, excursões à Lua, minissaia, vacina Sabin, biquíni, rádio, geladeira, aparelho de ar-refrigerado. Mas não vou negar que havia boas coisas: o mata-mosquito, o bonde, a melindrosa, o maxixe, o carnaval de rua, a serenata, o chapéu (do qual nós, os carecas, sentimos tanta falta), o pince-nez que servia para identificar poetas, e, sobretudo, o Real.

Sim, eu sinto muita saudade, do Real, a antiga unidade monetária brasileira, sob o signo do qual fui criado, raciocinando em termos de Mil-Réis. O Real foi contemporâneo da velha ortografia que começou a ser modificada até a reforma de 1943, um ano depois da instituição do Cruzeiro. Equivalia o Mil-Réis, à quarta parte da oitava de ouro de 32 quilates: 0,8965 gramas. E a moeda de vinte mil réis, que a gente escrevia 20$000, era a mais importante, porque representava cinco oitavas de ouro, ou 17,920 gramas.

Lembro-me do dólar custando dois mil réis e do cafezinho a um tostão. Em toda a minha vida, joguei uma só vez no bicho. Eu ainda estava no gymnásio. Morava na Rua do Lima, no Recife. Na venda da esquina arrisquei dois tostões no grupo 5, do cachorro. A tarde, fui receber meus 2 mil e 200. Pude ir ao cabaré Tupinambá e tomar cervejas ao som da orquestra dirigida pelo maestro Guio Morais...

O maço de cigarros Yolanda-500 custava uma prata de 10 tostões, isto é, um mil réis. Quando esta importância passou a um cruzeiro, já o Yolanda estava mais caro. Mas a gente ia à venda e pedia.

– Me dá um tostão de Yolanda.

O vendeiro abria o maço e embrulhava dois cigarros...

Quem não tinha dinheiro para comprar mais que isso também não podia pagar cem réis (um tostão ou dez centavos velhos) pela caixa de fósforos, apelava para as brasas dos fogões de barro. Havia sempre alguém fumando, nas ruas. E era comum qualquer pessoa pedir:

– Pode emprestar-me o fogo?

– Pois não.

O fato de encostar um cigarro no outro, em plena via pública, representava gesto de camaradagem, de solidariedade permanente entre desconhecidos. Depois de atendido, o que acendia o cigarro agradecia, sensibilizado, entre fumaças, o gesto de companheirismo que acabara de receber. E, em vez do “obrigado, meu chapa” ou do “oquei, compincha”, dizia:

– Muito agradecido, distinto.

– Não tem de quê, meu amigo, ora essa! Precisando, disponha.

Quem nunca ouviu talar no Real, porque nasceu no Cruzeiro, não acredita que se almoçava nos chinas por um cruzado (400 réis ou 40 centavos antigos). Não há cidadão, de 27 anos de idade, que imagine este Iolando, na sua idade, ganhando já o excepcional salário de cinco mil cruzeiros numa rádio e com a renda geral, contando com o jornal e direitos autorais diversos, de dez a doze mil cruzeiros. Então, o Iolando veio morar em Copacabana e comprou seu automóvel do ano, embora a prestações. O carro lhe custou a fortuna de 60 mil cruzeiros...

Qualquer economista contesta, somando e multiplicando, essa espécie de saudosismo. Demonstra que a renda per capita era menor, o dinheiro menos valorizado, os salários proporcionalmente mais baixos. Enrola e prova. Mas continuo não podendo ouvir falar no Real, porque ele me lembra o tempo do barato. O chamado tempo bom. Basta dizer que comprei muita mão-de-milho por um cruzado. E ganhava 200 mil réis por mês.

É fácil de ver quanto custam 50 espigas de milho para saber se o preço de hoje é proporcional ao meu salário...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1969)

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AS ELEIÇÕES DA ACADEMIA

Sem favor algum, Adonias Filho é dos bons escritores brasileiros. Se o elegesse normalmente, a Academia Brasileira de Letras estaria recebendo literato dos mais legítimos, dono de bagagem, não volumosa, mais fartamente louvada pela crítica. Não merecia Adonias Filho, por conseguinte, o achincalhe acadêmico de haver sido rejeitado quando não tinha posição política, e, agora, porque é diretor da Agência Nacional e da Biblioteca Nacional, e porque tem influência nas hostes governamentais, ser eleito em detrimento da própria obra.

A bem da verdade, ressalve-se o procedimento do romancista. Ele não teve a menor culpa em sua espantosa eleição. Não pensou em vencer a admirável estrutura moral e intelectual de Antenor Nascentes, com chincanas e coações. Pelo contrário, fui até informado, em palestra fraternal, pois lhe tenho estima e admiração, de que pensou em desistir, em sinal de respeito ao mestre Antenor Nascentes, mas seus bajuladores (não são amigos) não deixaram. Entre eles, aquele tristemente célebre que, ao prestar concurso para catedrático de literatura do Pedro II, conseguiu de um ex-governo todas as ajudas possíveis, e, mesmo assim, ficou em segundo lugar, tendo de ir lecionar no internato, contra a vontade, porque o primeiro colocado escolheu o externato...

Portanto, Adonias Filho foi mais humilhado, pela vitória que obteve, do que o mestre Antenor Nascentes, pela derrota. Merecia eleger-se com a própria obra, e, não pela situação política. E, se obteve alguns votos dignos, de três ou quatro que realmente leram os seus livros e o admiram, como Jorge Amado, ganhou de modo repulsivo o apoio viscoso e nauseante dos que lhe vão pedir favores e proteções, ou dos que já lhe devem obrigações...

Votaram no mestre Antenor Nascentes os seguintes acadêmicos: Álvaro Lins, Afonso Arinos de Melo Franco e Múcio Leão, por carta e, diretamente, Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, Austregésilo de Ataíde (presidente), Manuel Bandeira, Silva Melo e Barbosa Lima Sobrinho. Doze outros prometeram, festejaram o mestre, empenharam a palavra e, na hora, não resistiram ao clima de subserviência espontânea da maioria...

São, ao que me parece, oito acadêmicos os que têm mais de oitenta anos, inclusive Viriato Correia, o pequenininho que conheceu o Cavalo de Tróia quando ainda era potro. Alguns, pela idade, sofrendo de esclerose cerebral, votam sem noção do que estão fazendo. Um deles compareceu à sessão que elegeu Marques Rebelo, conversou e saiu, sem se lembrar das eleições...

Este mesmo, na quinta-feira passada, foi para São Paulo e, na sexta, veio para votar...

Um outro deu, por carta, o voto a Antenor Nascentes, fazendo-lhe os maiores elogios. No dia, esqueceu-se. Compareceu. Votou e saiu dizendo:

- A Academia tem obrigação de eleger Adonias Filho. Ele é professor emérito do Colégio Pedro II, é mestre de grande cultura e autor do dicionário da própria Academia. Vim aqui, tão-só, para votar nele.

Quando lhe disseram que havia trocado o nome de seu candidato, saiu a correr e foi ao presidente, para mudar o voto, mas já era tarde...

Essa instituição quer ser o estado-maior da cultura e quer ser dona do idioma, tendo neste último caso, apenas, um filólogo sentado em suas cadeiras: o prof. Aurélio Buarque de Hollanda.

A Academia que elegeu Getúlio Vargas, porque presidente da República, que fala em eleger o marechal Castelo Branco pelo mesmo motivo, já convidou também João Goulart (eis uma revelação). E o ex-presidente, que não era chegado a livros e, que se saiba, jamais leu, ao menos um manual de pecuária, embora seja entusiasta do assunto, não foi imortal porque não quis. Convites não lhe faltaram...

O Pequeno Trianon devia, porém, respeitar mais a obra de um escritor moço como Adonias Filho. Se a maioria dos acadêmicos o conhecesse, faria isso. Tê-lo-ia escolhido quando não desfrutava de posição política. Sobretudo, porque não faria com que ele passasse pelo irremediável vexame de participar, ainda que com instrumento involuntário, da maior mácula da história acadêmica: a de derrotar o autor do dicionário da Academia.

E, uma vez que, não tendo competência para elaborar um dicionário (pois, quando precisou de fazê-lo, teve de chamar alguém de fora) repudiou a própria obra, resta saber se ainda há algum resquício de pejo na entidade, para devolver a Antenor Nascentes seu próprio dicionário...

Antenor Nascentes

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1965)


sábado, 20 de novembro de 2021

ELEIÇÕES NA ACADEMIA

A Academia Brasileira de Letras vai realizar eleições, para preencher a vaga deixada por Álvaro Moreyra na cadeira que pertenceu a José do Patrocínio (fundador), Mário de Alencar e Olegário Mariano.

Concorre o mestre Antenor Nascentes.

Dizem os estatutos, em seu Art. 1º, que a entidade “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional.” Em primeiro lugar, a cultura da língua. No entanto, a Academia, no momento, conta, em seus quadros, tão-só, um filólogo: Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira.

Há movimento na Academia Brasileira de Filologia contra o fato de ser a Casa de Machado de Assis o órgão oficial do idioma. Acham os cultores da língua que se não justifica a soma de poderes enfeixados pelo Pequeno Trianon, com apenas um filólogo participando dos seus trabalhos. Tal movimento tende a vincar, e, conseguintemente, a desprestigiar a Academia de Letras.

Morrerá, todavia, no nascedouro, com a eleição do Mestre Antenor Nascentes. É ele, sem sombra de dúvida, dos mais respeitáveis filólogos brasileiros.

Como se não bastasse, fácil seria de verificar a contribuição cultural do Mestre à Academia Brasileira, e – já então em caráter oficial – ao País.

Autor de dezenas de trabalhos indispensáveis ao conhecimento da língua, Professor Emérito do Colégio Pedro II, dono de admirável formação clássica, Antenor Nascentes deu-nos o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, cujo terceiro tomo deverá sair ainda este ano, junto com a reedição dos dois primeiros. E chegaria obra de tamanha erudição e de tão definitiva importância, para classificá-lo como o candidato certo à Cadeira nº 21.

Mas não fiquemos por aí. Quando a Academia Brasileira de Letras necessitou realizar seu dicionário – o dicionário oficial do Brasil – convidou o Mestre Antenor Nascentes para elaborá-lo. É ele, por conseguinte, o autor do dicionário da Academia. E, agora, concorre pela primeira e última vez a uma eleição.

Não o elegendo, obviamente, a Academia de Letras estaria repudiando o próprio dicionário. Estaria como que deixando de legitimar um filho, para criá-lo espúrio.

E não acredito que isso aconteça.

Antenor Nascentes
(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1965)

terça-feira, 2 de novembro de 2021

FINADOS

Anteontem, Finados, chuvoso, lágrimas do céu, do mundo, em mim, porque pétalas caíram pela estrada da vida: meu pai, minha mãe, meu avô Nestor, minha avó Matilde, meu avô Galhardo, Dindinha, Marta e Teixeira, Anne Marie Conrad, Sílvio Néri da Fonseca, Filgueira-Filho, Silvino Lopes, Austro Costa, Roberto Gantois, Roberto de Andrade, Luís Maranhão, José Roma, Tia Isabel, Tia Sinhazinha, Tio Miguel, Tio Xandu, Henrique, Agnaldo, Tia Mira, Mário de Holanda, Samuel Campelo, Padre Félix Barreto, Norton França, Paulo Lopes, Zezinho das Gravatas, Vivi General, Dagoberto Pires, Alexandre Plemont, Ulisses Pernambuco, Manuelzinho, Luís Santos, Marilu Ramalho, Mário Melo, Alberto Figueiredo, Eugênia e Álvaro Moreyra, Carlos Tovar, Olegário Mariano, Vitor Costa, Ismênia dos Santos, Restier Junior, Carlos Machado, Itália Fausto, Custódio Mesquita, Paulo Bruno, Luís Iglézias, Paulo Orlando, Armando Gonzaga, Miguel Santos, Graziela Ramalho, Mesquitinha, Dinarte Armando, Ismael Neto, Geraldo Pereira, Benedito Lacerda, Héber de Bôscoli, João Petra de Barros, Garôto, Ari Barroso, Lamartine Babo. Sílvio Silva, Luis Carneiro, Batista Teixeira, Amália de Souza, Comandante Fontoura, Armando Cavalcanti, Sargento Baracho, Sargento Jupi, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Carlos Pena Filho, Jorge de Lima, Rogério Pongetti, Nestor Moreira, Carlos Rubens, Mário de Andrade, Vassourinha, Luís Barbosa, Capitão Moeda, Francisco Carlos, Aníbal Fernandes, Antônio Ciribelli, Sargento Wolff, Artur Ramos, Roquete-Pinto, Pancetti, Catulo da Paixão Cearense, Joaquim Ribeiro, Otávio Tarquínio de Sousa, Lúcia Miguel Pereira, Portinari, Osório Borba, Villa-Lobos, Mário Eugênio Silva, Jorge Faraj, Germano Augusto, Freire Júnior, Estevão Cruz, General Rondon, Silvino Lira, Evaldo Rui, Olívio Montenegro, Francisco Alves, Luís Paulistano, Roberto Silveira, Carmem Miranda, General Portocarrero, Benjamim Cabello, João de Deus Falcão, Nelson Paixão, Silvestre Maia, Guevara, Anis Murad, Andrade Lima, Teixeira Pinto, Evangelina Lessa, João Matos, José Maia, Adelmar Tavares, Gustavo Barroso Ribeiro Couto, Brito Broca, Cláudio de Sousa, Luís Edmundo, De Sousa Júnior, Rafael de Holanda, Abadie Faria Rosa, Jardel Jercolis, Mário Sallaberry, Enéias Viany, Celestino Silveira, Dolores Duran, Teopompo Moreira, Oscar Brandão, Fernando Tude de Sousa, Joaquim Alves da Silva, Afra Mynssen, Henrique Tavares, Luís Vassalo, Dario de Almeida, Romeu Ghipsman, Edu, Ernani Fornari, Luciano Carneiro, Plácido Ferreira, Vina de Sousa, Mário Faccini, Armando Braga, Luís Americano, De Chocolat, Gustavo Martins, César de Barros Barreto, Darci Cazarré, Conchita de Morais, Seu Porto, Átila Morais, Humberto Porto, Antonio Maria, lágrimas em mim, Finados chuvoso, lágrimas do céu, do mundo, porque pétalas caíram pela estrada da vida.

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1964)

Imagem capturada da Biblioteca Nacional Digital - Brasil


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CARTA DE CHAMADA

Os anos se passaram, a vida mudou, acho que meu temperamento se modificou, porque andei pelo mundo, vi terras, vi povos, costumes vários, faz vinte e tantos anos que sou vegetante de cidade grande – ah, se ainda tivesse quem me mandasse carta de chamada:

 “Volte, Iolando.

Continuamos à sua espera.

Seu quarto, com a cama-de-vento, os tamancos, o capitão, o armário e o cortinado, e a rede do alpendre, tudo está, ainda, no mesmo lugar.

Rosalina ficou mais velha, é claro, mas suas mãos sempre milagrosas. Ouviu dizer que aí, onde você mora, não existe fogão de carvão. Soube também que vocês não usam panela de barro. Está admiradíssima! Não crê que seja possível alguém cozinhar uma feijoada, com tudo dentro, sem carvão e sem panela de barro.

Aproveitando esta, Rosalina manda perguntar que prato você quer que ela prepare, para o dia de sua chegada. São tantos os de que você gosta que ela nem sabe qual faça primeiro. Carne-de-sol com farofa de bolão? buchada? mocotó? cabidela? quibebe? pirão de macaxeira com carne-do-ceará? Mande dizer, Iolando, que deseja comer em primeiro lugar.

No dia seguinte, quando você acordar com o Príncipe cantando (seu galo, lembra-se?), terá à mesa os mesmos pratos de sempre: fruta-pão, cará, macaxeira, banana-comprida, batata-doce, cuscuz, tapioca, beiju, café torrado em casa, depois de batido no pilão, e leite da cabra Boneca.

Às oito horas, iremos todos à estação, ver chegar o trem, com os jornais e as novidades do Recife. Ficaremos na farmácia, ajudando o avô, até a hora do almoço. Depois, rede, Iolando, com o sono alimentado pela cachaça de cabeça, destilada em alambique de barro. Às 6 da tarde, iremos novamente à estação, receber o trem de São Caetano, com os caixeiros-viajantes de guarda-pó e as moças bonitas comprando água fria. Na volta, jantaremos.

À noite, poderemos ir ao Teatro Diogo Braga. Está fazendo temporada aqui um mágico fenomenal. É o grande sucesso do momento. Tem uns bonecos que falam e suspende a mulher no espaço, sem encostar o dedo nela. Não perco uma noite de função. Mal acabo de jantar, o Severino leva as cadeiras do corredor para o teatro.

Depois do espetáculo, iremos para o Trepa-Bode, fazer serenata. Seu pinho ainda está no mesmo lugar, em cima do guarda-vestido da avó. Ela o conserva com o maior cuidado, para a sua volta. Lembra-se daquela sua valsa, em lá menor, feita para a filha de seu Brito? Pois até hoje o pessoal canta. Dizia assim: ‘Só morrendo era um bem. Porque, ao sabê-la morta, uma certeza me conforta: não será mais de ninguém...’

Volte Iolando.

Continuamos à sua espera”.

 Esta é a carta de chamada que jamais receberei. Não há mais quem a escreva.

(Publicada, originalmente, na seção "Telhado de Vidro", no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, em 30-31 de maio de 1965, e, com algumas modificações, no seu livro de crônicas selecionadas "Telhado de Vidro", volume I, editado pela BRADIL Rio de Janeiro, em 1967) 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

CRIANÇAS

        SEMPRE me chegam livros infantis. São estórias bonitinhas, ora do casamento da baratinha, ora do vovô que encontrou uma fada no pomar, ora, ainda, da tartaruguinha que deu conselhos à cobra, para não envenenar o porquinho e dizem os entendidos que veneno de cobra não mata porco...

Não sei se os meninos de hoje lêem essas estórias. Desconfio de que eles não sentem mais nada diante dos milagres obtidos pela varinha-de-condão das fadas louras e sorridentes que surgem nos momentos mais difíceis da vida da moça perseguida pela madrasta. Menino de hoje dificilmente faz a clássica pergunta do “Mamãe, como é que a gente nasce?”...

A televisão, que tanto deseduca juvenis e adultos, tem lá sua virtude de ensinar menino a falar mais cedo e de mostrar que o homem se prepara para ir à Lua. O pó de piripimpim, do grande Lobato, não deve causar o mesmo impacto num garoto que vê os astronautas em desfile nas telas de TV ou de cinema, nas páginas de revistas e de jornais. As Vinte Mil Léguas Submarinas nada mais significam para o pequeno que a todos os instantes assiste a filmes passados debaixo d’água, com aventuras de homens-rãs, de famosos mergulhadores que fazem porta-aviões explodir. E sinto até certo constrangimento de oferecer livros de Monteiro Lobato ou de Júlio Verne a qualquer afilhado...

Não há muito tempo, Alfredo Souto de Almeida, publicitário e homem de televisão, fez conferência sobre o assunto e informou que a primeira palavra dita pelo filhinho de um conhecido seu foi:

– Omo!...

Menino que começa a vida dizendo “Omo”[1], por força da televisão, vai dizer “helicóptero” (palavra que, no meu tempo, era difícil) alguns meses depois. Vai brincar de avião soltando bomba-atômica e de disco-voador trazendo marciano para tomar banho de mar em Cabo Frio. Depois de ver reportagens sobre a cura da raiva e sobre transplantes, e depois de tomar conhecimento de múmias, não se entusiasma com a bela adormecida do bosque. Pensa lá com seus botões: “– Ou os médicos não viram que ela está dormindo, ou ela é a filha de Cleópatra embalsamada”. Jamais acreditará no “príncipe encantado” fazendo proesas para despertar sua amada, numa época em que todo mundo luta judô e qualquer um daria bruta surra no valente. Demais, um pirralho mais esperto diz logo:

– Esse magnata é otário, às pampas. Não manja nerusca de neuribes, de mina. Se o bacanca desse as caras em Copa Beach veria boazudas muito mais legais e se esqueceria da que vive na lombra. Pra mim, essa tal de Bela Adormecida ‘tá de pissicata na fornalha ou de planta-do-diabo na cuca...

Em que pese qualquer exagero – se é que este existe – não tenho a menor dúvida de que a literatura infantil tem de ser reformulada. Pelo menos, atualizada. Não digo que a fada troque a vara-de-condão por uma lurdinha ou um cassetete tamanho-família, mas é bem possível que muito menino, a esta altura, prefira vê-la de biquíni, como a mamãe, ou, quando muito, de Saint-Tropez, como a vovó...

– “Ó têmpora! Ó mores!” – dizia sempre o Xandu, quando via a madrasta do próprio filho apenas de mangas curtas. E explicava: “– Bem disse Qüíqüero[2], a propósito de Catilina, quando profligou energicamente a cumplicidade moral que permitia se ousassem os maiores atentados.

E Xandu não conheceu a minissaia...



[1] N. do E. – Marca de sabão-em-pó.

[2] N. do E. – Segundo o autor, era a maneira de Xandu dizer “Cícero”.

 • Nestor de Holanda 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1968)

domingo, 10 de outubro de 2021

FILME INFANTIL

O assunto foge ao pequeno alcance de meus conhecimentos. Tenho cá comigo, todavia, uma dúvida: será conveniente teatro infantil representado por crianças?

Deixo a questão aos pedagogos.

Assisti, em alguns países mais desenvolvidos, no assunto educação, que o nosso, a alguns espetáculos para crianças. Os atores eram adultos.

Um professor me disse:

- O teatro de crianças cria nas espectadoras certa inveja, a qual pode transformar-se numa espécie de sentimento de inferioridade. Ao mesmo tempo em que a menina assistente gosta da beleza e da bondade da que interpretou, digamos, a Branca de Neve, pode julgar que não é tão boa nem tão bela quanto a outra...

Ainda perguntei:

- Não haveria a possibilidade da espectadora aceitar o exemplo, e, recebendo a lição da peça, procurar ser tão boa e tão bela quanto a outra?

- Dificilmente, esclareceu o professor. A prática tem demonstrado o contrário.

Não sei até que ponto isso é real. O assunto, já disse, foge ao pequeno alcance de meus conhecimentos. Por isso, a dúvida permanece. Temos educadores, pedagogos ilustres, que poderão dar a última palavra sobre essa questão...

De qualquer maneira, assisti, com entusiasmo, ao filme “O Parque”, realizado, por iniciativa própria, pela culta (embora jovem) professora Maria José Alvarez. E não posso negar: assisti a espetáculo extraordinário, admirável, encantador.

A Profª deu-me a honra de uma exibição especial de seu filmezinho de quinze minutos de duração. Carlos Alberto, o “China”, de 11 anos de idade, faz o papel principal do menino pobre que se põe a trabalhar, para conseguir dinheiro a fim de gozar as delícias de um parque de diversões. Engraxa sapatos, vende garrafas vazias, ajunta ferro velho, negocia até seu canário cantador, e, quando reúne o suficiente para pagar ao carrossel, à roda gigante etc., o parque de diversões já encerrou a temporada e foi desarmado...

É comovente. O roteiro foi escrito pela menina Graça Rangel, de 15 anos, aluna do segundo ginasial. Carlos Egberto, tem 17 anos. Claro que a orientação coube a adultos, porque há cortes excelentes; mesmo assim, foi um filme de crianças para crianças. Estas atuaram, inclusive, no laboratório. E, num caso como este, não creio que se aplique, de forma alguma, o ponto-de-vista do mestre que me falou sobre a Branca de Neve.

“O Parque” é educativo. Exibe aspecto construtivo de grande alcance, de beleza rara. O espectador mirim se compadece do menino pobre. Vive, na luta do “China”, o drama comum, bem brasileiro, de milhares de meninos pobres. Sente a indignidade social da divisão de castas. Aprende ida. Aprende amor. Honradez. Importância do trabalho como fator de vitória. E foi pena a vitória do “China”, pelo trabalho, não se tivesse concretizado...

Sem nenhum apoio, empregando verbas de sua própria economia, com sacrifício, idealismo, dedicação, a Profª Maria José Alvarez realizou algo admirável. É mestra na acepção do vocábulo.

E não duvido de que venha a sofrer perseguições movidas pela inveja das que não sabem fazer o mesmo...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1964)

sábado, 9 de outubro de 2021

OS ROUXINÓIS

       Se você estiver procurando apartamento para alugar, não mais pergunte se falta água, não tome conhecimento do preço do aluguel nem queira saber se a morada é clara ou escondida do sol. Pergunte, apenas:
        - Há alguma vizinha que seja soprano?
        Em caso negativo, pague qualquer aluguel. Deixe a água do Guandu faltar em abundância. Não se preocupe com a ausência de luz ou de ventilação. O sossego é tudo!
        Se acontecer resposta afirmativa, fuja. Para bem longe. Ponha em quarentena, uma área circunvizinha de, no mínimo, 50 mil metros quadrados, que é, pelos meus cálculos, o raio de alcance dos bramidos de soprano gordo. E vá ser inquilino em outra freguesia.
        Ouça a chamada voz da experiência: Se não seguir este conselho, você, amanhã,  estará no meu caso. Ouvirá, todas as manhãs, o enterro de uma melopéia. Depois que a “vaca leiteira” apitar o suficiente (isso em seus ouvidos) para chamar a freguesia; depois que o amolador também em seus ouvidos, soprar na gaita o alerta às tesouras cegas; depois que o garrafeiro abrir o grito para saber quem tem garrafas e jornais velhos - entrará em seu edifício uma pianista aposentada, transportando Franz Liszt ou Richard Wagner debaixo do sovado. Será a acompanhante do rouxinol vizinho. E suas oiças passarão a viver sob o massacre de gorjeios mal-assombrados, com perseguição da aposentada.
        Adeus bem-estar matinal!
        Cada trinado será provocação em dó sustenido maior, o maior de todos os dós.  Você sofrerá violentos agudos em 1.300 vibrações por segundo. A garganta dos sopranos, para perturbar ainda mais os vizinhos, tem precisão de aperfeiçoar-se, todas as manhãs, a fim de conseguir altura, timbre, duração e intensidade. Tudo isso é praticado, a um só tempo, em individuais monstruosos que, estouram em sua janela e entram pela casa, invadindo todos os cômodos.
        Esses animais volumosos são chamados de rouxinóis. Lá em Vitória de Santo Antão, meu porto de origem, rouxinol é corruíra, pássaro meigo, que canta e canta bonito. Aqui, como acabamos de descobrir, rouxinol é a senhora grossa na Linha do Equador, abarrotada de acidentes geográficos, que, ao sair de casa, põe na cabeça um chapeuzinho com uma pena indicando o norte magnético, a qual serve para se saber se a dona está de frente ou está de costas.
        Ainda outro dia, encontrei-me com a corruíra do edifício em que moro. Apertei o botão do elevador e ela veio dentro. Como se trata de um Otis, com capacidade máxima para dez passageiros, sob pena de multa, eu, que não queria pagar a multa por excesso de peso, perguntei se o elevador estava lotado. O rouxinol respondeu que não, balançando a cabeça e  a peninha de sua bússola de cocuruto. Mas estava. Eu vi que estava...
        Meu edifício tem 48 apartamentos, todos grandes. Juntando com os prédios que o circundam, são mais de dois mil apartamentos. Ninguém incomoda ninguém. Só um rouxinol, todas as manhãs, distribui intranqüilidades a domicílio, pela jurisdição...
        Por que o Governo não cede ilha da Guanabara, das mais isoladas, para servir de viveiro aos rouxinóis?!
        Depois de ler este conselho, até aqui, você pode considerar-se avisado. De hoje em diante, só cairá em terreno minado por sopranos, se quiser. Não poderá mais ser pegado à traição, como eu fui.
        Tanto que escrevo, neste momento, sob a tremenda tensão de ter de ouvir os mais formidáveis gargarejos que um homem pode sofrer. Basta dizer que minha vizinha faz individual, hoje, com a  “Granada” do Sr. Agostin Lara.
        E espero, a qualquer momento, que ela estoure, levando pelos ares dois mil apartamentos, o que destruirá grandes empreendimentos imobiliários....
 
   (In Ah! Saudade Engraçada!..., Livraria São José, 1962;
e também, in Telhado de Vidro, volume II, BRADIL, 1967)

 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

RECIFE

VELHO AMIGO vem visitar-me. Pede minhas impressões sobre o novo Recife. Digo-lhe que me sinto velho diante da cidade que me viu nascer. Bairros inteiramente reconstruídos, edifícios de mais de vinte andares, movimento intenso, largas avenidas, demolições constantes dos antigos pardieiros, pontes recentes, visível e assustadora explosão democrática.

– O Recife não cresceu, afirma. Inchou.

– Teria sido em conseqüência das enchentes?

– Decerto.

Caminho pelas ruas modificadas. Tento localizar pontos que me eram familiares. Relembro episódios. Há vinte e seis anos deixei a cidade de vez, mas apenas há quatro meus olhos não reencontram o Capibaribe.

Não conhecia a Ponte do Limoeiro nem a Avenida Norte. O Banco do Brasil e o Pronto Socorro ocupam majestosos edifícios. As avenidas Guararapes e Visconde da Boa Vista, ligadas pela Ponte Duarte Coelho, são a espinha dorsal do Recife. Perderam a expressão as ruas Nova e Imperatriz. Boa Viagem foi assassinada pela ganância imobiliária: não mais os coqueiros, as lindas residências. Ganhou prédios, apartamentos, comércio, quer ser Copacabana. Agora, quem desejar paisagens nordestinas à beira-mar terá de ir mais para o sul, para Piedade. Candeias. Gaibu.

O trânsito necessita, urgentemente, de um Fontenele. Excesso de veículos e, por conseguinte, disputa constante entre motoristas. Se qualquer pessoa levanta o braço, distraidamente, para coçar a cabeça, um carro de aluguel pára, pensando que foi chamado...

Morei quase vinte anos no Recife. Residi em vários bairros: Boa Vista, Santo Antônio, São José, Dérbi, Casa Amarela, Prado, Torre, Capunga. Jamais vi enchentes, do Capibaribe ou do Beberibe. O mar batia fortemente em Olinda, todavia, não ameaçava as casas. Algumas vezes, cheias, com os rios sujos, mas sem que as águas invadissem residências, destruíssem pontes e derrubassem os cais. Entretanto, a cidade inchou. Nada foi planificado. Aterros e mais aterros. Fecharam o acesso das águas. O mar invadiu Olinda. Construíram arrecifes pelas praias dos Milagres, Carmo, São Francisco, Farol e Cajueiros. Também naqueles lados, quem quiser paisagem nordestina à beira-mar terá de ir mais para o norte, para o Rio Tapado, Casa Caiada, Rio Doce. Os velhos mangues desapareceram. Cada nova ponte é barragem. E os rios transbordam com. facilidade...

As enchentes do Recife não são provocadas, como as do Rio de Janeiro, por imensas precipitações pluviais. Basta uma chuva mais forte no interior, lá nas nascentes, para a cidade sofrer. Muita vez, nem chove no Recife, mas as águas sobem, passam de dois metros em vários bairros, destroem tudo. E trazem milhares de cobras venenosas para as casas recifenses.

Uma senhora foi mordida num ônibus, A cobra estava embaixo da almofada do assento. Um conhecido matou nove, das mais temíveis, dentro de casa. Um outro me disse:

– Fiquei impressionado. De manhã cedo, fui ao banheiro, fazer a barba. Encontrei duas cobras dentro do armário. Como entraram ali é mistério...

As autoridades nada fizeram, até agora, para evitar as enchentes. Estão reconstruindo pontes e cais que tombaram, para que outras inundações os derrubem novamente...

Assim encontrei o novo Recife. Pouco resta do velho, das ruas tortuosas de minha infância, das praias de minhas vadiagens, das escolas que me expulsaram como aluno indisciplinado. A paisagem é outra.

O Recife inchou.

Recife, PE, em 1967 [Imagem do Arquivo Nacional]

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de março de 1967)

quarta-feira, 23 de junho de 2021

INFÂNCIA SEM INFÂNCIA

Fui criança feliz. Tive quintal. A mangueira mais alta era meu avião. Eu o pilotava entusiasmado, e com a maior facilidade, saía do Recife e chegava a Caracas. Por que Caracas? Não me lembro mais da razão de ir sempre àquele Estado (eu, achava que Caracas era um Estado). De lá, corria países diversos: Lisboa, França, Portugal, o Havre (Lisboa era país, e o Havre era terra de minha madrinha).

Tive as praias do Pina e de Olinda, para correr, jogar bola, pescar sobre as pedras, até para tomar banho salgado. Velejei em muita jangada de alto, peguei mar brabo, fui às paredes, fiz pescarias de dormida, de covo, de cerrador – já crescido, comprei uma jangada para mim, novinha em folha, com o Popey no alto da vela, para que as meninas a identificassem ao longe...

Nada me comove mais, por tudo isso, que ver a infância do Rio. De modo geral, ela se divide em dois grupos: o dos menores abandonados, sem lar ou vivendo em barracos de morros, de qualquer forma em aprendizado constante de crimes de toda espécie e, já revoltados diante da injustiça social; e o dos engaiolados, seqüestrados pela própria vida nos apartamentos. Ambos os grupos são vítimas de uma cidade ingrata, sofrida, sacrificada; ambos são a infância sem direito à infância.

Menino de apartamento, mesmo quando mora perto da praia, onde brinca? Se vai para a areia, sofre um mundo de restrições. A bola é proibida O mar é perigoso. Pouco tem para onde correr, entre barracas e biquínis ao sol. Na rua, o trânsito intenso e lotações atropelando, até sobre os passeios. Na calçada, o porteiro reclama a bola, a bicicleta, as corridas ou o barulho. Nos corredores do edifício, os demais vizinhos protestam contra a algazarra. Dentro de casa, a mamãe, sempre a mamãe:

– Não me suje a sala.

– Não me desarrume o quarto.

– Não me estrague as almofadas.

– Não corra no encerado.

Tranca-se o menino, isolado, em vida sedentária, à sombra, sem ar, no ambiente impróprio para a sua idade. Vê televisão, com a. qual mais se corrompe, e não, anda descalço, porque não há água para lavar os pés. E quando se tranca, para brincar silencioso, cativo, fazendo por onde não sofrer repreensões, a mamãe, sempre a mamãe, desconfia de seu silêncio e chama a empregada:

– Maria, vá ver o que os meninos estão fazendo e diga a eles para não fazerem isso.

Fui criança feliz, tive quintal, praia, jangada veleira, nadei, pesquei, fui à Caracas pilotando a mangueira. Devo a isso o fato de só ter adoecido quarenta anos depois, de uma Senhora Margarida no duodeno. E me comovo ao ver a infância infeliz do Rio, abandonada ou presa demais, com excesso de liberdade ou sem nenhuma, esquecida sempre – ou, quando muito, brincando uma vez por ano, nas ruas de recreio, para ajudar as promoções de um vespertino.

Senhores, a infância é nosso maior problema, é o primeiro ponto nacional para uma reforma de base!

(Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, em 7 de janeiro de 1964)