terça-feira, 12 de outubro de 2021

CRIANÇAS

        SEMPRE me chegam livros infantis. São estórias bonitinhas, ora do casamento da baratinha, ora do vovô que encontrou uma fada no pomar, ora, ainda, da tartaruguinha que deu conselhos à cobra, para não envenenar o porquinho e dizem os entendidos que veneno de cobra não mata porco...

Não sei se os meninos de hoje lêem essas estórias. Desconfio de que eles não sentem mais nada diante dos milagres obtidos pela varinha-de-condão das fadas louras e sorridentes que surgem nos momentos mais difíceis da vida da moça perseguida pela madrasta. Menino de hoje dificilmente faz a clássica pergunta do “Mamãe, como é que a gente nasce?”...

A televisão, que tanto deseduca juvenis e adultos, tem lá sua virtude de ensinar menino a falar mais cedo e de mostrar que o homem se prepara para ir à Lua. O pó de piripimpim, do grande Lobato, não deve causar o mesmo impacto num garoto que vê os astronautas em desfile nas telas de TV ou de cinema, nas páginas de revistas e de jornais. As Vinte Mil Léguas Submarinas nada mais significam para o pequeno que a todos os instantes assiste a filmes passados debaixo d’água, com aventuras de homens-rãs, de famosos mergulhadores que fazem porta-aviões explodir. E sinto até certo constrangimento de oferecer livros de Monteiro Lobato ou de Júlio Verne a qualquer afilhado...

Não há muito tempo, Alfredo Souto de Almeida, publicitário e homem de televisão, fez conferência sobre o assunto e informou que a primeira palavra dita pelo filhinho de um conhecido seu foi:

– Omo!...

Menino que começa a vida dizendo “Omo”[1], por força da televisão, vai dizer “helicóptero” (palavra que, no meu tempo, era difícil) alguns meses depois. Vai brincar de avião soltando bomba-atômica e de disco-voador trazendo marciano para tomar banho de mar em Cabo Frio. Depois de ver reportagens sobre a cura da raiva e sobre transplantes, e depois de tomar conhecimento de múmias, não se entusiasma com a bela adormecida do bosque. Pensa lá com seus botões: “– Ou os médicos não viram que ela está dormindo, ou ela é a filha de Cleópatra embalsamada”. Jamais acreditará no “príncipe encantado” fazendo proesas para despertar sua amada, numa época em que todo mundo luta judô e qualquer um daria bruta surra no valente. Demais, um pirralho mais esperto diz logo:

– Esse magnata é otário, às pampas. Não manja nerusca de neuribes, de mina. Se o bacanca desse as caras em Copa Beach veria boazudas muito mais legais e se esqueceria da que vive na lombra. Pra mim, essa tal de Bela Adormecida ‘tá de pissicata na fornalha ou de planta-do-diabo na cuca...

Em que pese qualquer exagero – se é que este existe – não tenho a menor dúvida de que a literatura infantil tem de ser reformulada. Pelo menos, atualizada. Não digo que a fada troque a vara-de-condão por uma lurdinha ou um cassetete tamanho-família, mas é bem possível que muito menino, a esta altura, prefira vê-la de biquíni, como a mamãe, ou, quando muito, de Saint-Tropez, como a vovó...

– “Ó têmpora! Ó mores!” – dizia sempre o Xandu, quando via a madrasta do próprio filho apenas de mangas curtas. E explicava: “– Bem disse Qüíqüero[2], a propósito de Catilina, quando profligou energicamente a cumplicidade moral que permitia se ousassem os maiores atentados.

E Xandu não conheceu a minissaia...



[1] N. do E. – Marca de sabão-em-pó.

[2] N. do E. – Segundo o autor, era a maneira de Xandu dizer “Cícero”.

 • Nestor de Holanda 

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1968)

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