domingo, 5 de fevereiro de 2012

O HUMOR DE ARY BARROSO

Jamais Ary Barroso se zangou. Cada vez que fingia irritar-se, arrancava as maiores gargalhadas de quem estivesse por perto. Quando xingava alguém, esse alguém ria. Se ridicularizava um calouro, o calouro até se sentia feliz. Se ficava inimigo de um companheiro de bar, voltava no dia seguinte e abraçava o “inimigo” inteiramente esquecido de que estavam de relações cortadas. Uma vez, disse-lhe:

– Ary, eu pagaria ingressos para conversar com você. E pagaria em dobro, quando você estivesse dando broncas.

Ary Barroso
Foi toda uma vida de irritabilidade artificial, de estouros de superfície. No fundo, porém, excelente humor. Em que isso pareça absurdo, porque uma hepatite o arrancou de nosso convívio. Ary Barroso sempre foi homem de ótimo fígado...

Até depois de enfermo, quando reagiu bem à primeira fase da moléstia,, há coisa de dois anos, e, pode sair, ainda apareceu pelos bares em que freqüentávamos, transformando a doença em motivo de riso:

– Garçom, traga-me uma garrafa de água mineral.

(Até o garçom ria...)

Poucos homens conheci tão autênticos, tão fieis a si mesmos. o Ary Barroso de calção na praia ou de pijama em casa era exatamente o Ary Barroso que se dirigia ao Presidente da República; era exatamente o mesmo do microfone, das câmaras, do bar – o dono de personalidade impressionante. Não abria mão do direito de ser ele próprio, doesse a quem doesse.

Antonio Maria
Antonio Maria foi de seus melhores amigos. Muitas vezes discutiram, com espírito, usando pretextos divertidos, inclusive na televisão. Na realidade, porém, eles se queriam como irmãos. E, num encontro, Ary Barroso, com aquela irreverência toda sua, pediu:

– Maria, cante um princípio de Aquarela do Brasil.

– Para quê?

– Cante. Quero ouvir. Cante.

Tanto insistiu que Antonio Maria cantou:

– “Brasil! Meu Brasil brasileiro...”

– Chega.

E com a maior ironia:

– Agora, peça para eu cantar Ninguém me Ama, pra ver se eu sei...

Em seu programa na Televisão-Tupi, uma tarde, condenou certos sambas:

– Há letras que corrompem, que deseducam, que são prejudiciais à juventude. Há versos que ensinam a beber. Um deles diz “Afogue a saudade nos copos de uma bar”. Isto é condenável!

Parou. Arregalou os olhos. Caiu em si:

– Desculpem. Esse samba é meu. É o Risque...

De outra feita, respondeu a um crítico:

– Ele atacou meu samba. Disse que os versos são medíocres, porque eu falo em “mero passageiro”. E afirmou que mero é peixe.

Limpou os óculos e se fingiu de irritado:

Mero, peixe, é substantivo. O mero que empreguei é adjetivo. Quer dizer: “simples, extreme, genuíno, puro”...

Soltou risinho e continuou:

– Adiante, como eu falo em “beijo que mata”, o crítico declarou que beijo não mata. Outra bobagem: mata, sim. Mata por asfixia, mata transmitindo micróbios, mata por estrangulamento, mata se o namorado meter uma faca nas costas da namorada, e mata por nau hálito, porque, quando eu era rapazinho, tive uma namorada que me beijou e eu “morri” devido ao seu mau hálito...

Pouco tempo depois, no Parque Guinle, um rapaz, durante o beijo, matou a namorada com uma faca. Fiz ver ao Ary a coincidência. E ele:

– Eu não disse que beijo mata?

Há alguns anos, quando seus filhos eram solteiros, certo rapaz do Leme andou pretendendo casar-se com a Mariuza, sua caçula. Ary chamou o Flávio, o filho mais velho:

– É preciso acabar com esse namoro.

– Bem, papai. Mariuza não dá a menor atenção ao galã. Pode ficar descansado. Mas, se desse, que teria demais? São dois jovens.

– Não, senhor. Esse rapaz bebe.

– Mas, papai, o senhor também não bebe?

E Ary, num rompante:

– Mas não estou querendo casar com a Mariuza...

Em luta com seus calouros do rádio, dava espetáculos à parte. O calouro – e eu já tive ocasião de escrever isso – é bípede irracional. Um deles anunciou, ao microfone:

– Vou cantar o samba Escrava Isaura, do Dr. Ary Barroso.

O compositor ficou surpreso. Jamais fizera música com o mesmo título do famoso romance de Bernardo Guimarães:

– Palavra de honra, meu amigo. Não conheço este samba. Mas pode cantá-lo.

O calouro interpretou Inquietação, cuja letra diz: “Quem se deixou escravizar etc.” Mas disse o verso da seguinte maneira:

– “Quem se deixou escrava Isaura etc.”

Tom Jobim e Vinícius de Morais
Outro ia cantar composição de Vinícius de Morais e Tom. Nunca Ary permitiu que os autores deixassem de ser enunciados em seu programa. Na hora, o calouro se esqueceu dos nomes. O animador já ia proibir que ele se apresentasse, quando o coitado se lembrou de um:

– O samba é de Vinícius.

Ary citou o parceiro do poeta:

– E o Tom?

O calouro:

– Ré menor...

Do mesmo gênero, na Rádio Nacional, em programa de perguntas que Ary animou:

– Quantas sinfonias Beethoven compôs?

– Uma – respondeu o concorrente.

– Qual foi?

– A Nona...

Assim era o bom Ary Barroso. Com ele morreu dos mais sadios sensos de humor desta praça – humor que, não raro, fingia ser zanga, ainda para fazer rir. Viveu sempre de música, inclusive ao som da música das gargalhadas. Foi todo alegria. Por isso, o acaso quis que ele fechasse os olhos em pleno carnaval. O acaso, somente, não; ele bem o quis. Detestava o sossego, a quietude, a tristeza. Tanto que, poucos dias antes, José Maria Scassa o encontrou cantando em seu leito de dor. E Ary Barroso explicou:

– Estou cantando, Scassa, porque o silêncio da morte é fogo!

(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1964)

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