– Ary, eu pagaria ingressos para conversar com você. E pagaria em dobro, quando você estivesse dando broncas.
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Ary Barroso |
Até depois de enfermo, quando reagiu bem à primeira fase da moléstia,, há coisa de dois anos, e, pode sair, ainda apareceu pelos bares em que freqüentávamos, transformando a doença em motivo de riso:
– Garçom, traga-me uma garrafa de água mineral.
(Até o garçom ria...)
Poucos homens conheci tão autênticos, tão fieis a si mesmos. o Ary Barroso de calção na praia ou de pijama em casa era exatamente o Ary Barroso que se dirigia ao Presidente da República; era exatamente o mesmo do microfone, das câmaras, do bar – o dono de personalidade impressionante. Não abria mão do direito de ser ele próprio, doesse a quem doesse.
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Antonio Maria |
– Maria, cante um princípio de Aquarela do Brasil.
– Para quê?
– Cante. Quero ouvir. Cante.
Tanto insistiu que Antonio Maria cantou:
– “Brasil! Meu Brasil brasileiro...”
– Chega.
E com a maior ironia:
– Agora, peça para eu cantar Ninguém me Ama, pra ver se eu sei...
Em seu programa na Televisão-Tupi, uma tarde, condenou certos sambas:
– Há letras que corrompem, que deseducam, que são prejudiciais à juventude. Há versos que ensinam a beber. Um deles diz “Afogue a saudade nos copos de uma bar”. Isto é condenável!
Parou. Arregalou os olhos. Caiu em si:
– Desculpem. Esse samba é meu. É o Risque...
De outra feita, respondeu a um crítico:
– Ele atacou meu samba. Disse que os versos são medíocres, porque eu falo em “mero passageiro”. E afirmou que mero é peixe.
Limpou os óculos e se fingiu de irritado:
– Mero, peixe, é substantivo. O mero que empreguei é adjetivo. Quer dizer: “simples, extreme, genuíno, puro”...
Soltou risinho e continuou:
– Adiante, como eu falo em “beijo que mata”, o crítico declarou que beijo não mata. Outra bobagem: mata, sim. Mata por asfixia, mata transmitindo micróbios, mata por estrangulamento, mata se o namorado meter uma faca nas costas da namorada, e mata por nau hálito, porque, quando eu era rapazinho, tive uma namorada que me beijou e eu “morri” devido ao seu mau hálito...
Pouco tempo depois, no Parque Guinle, um rapaz, durante o beijo, matou a namorada com uma faca. Fiz ver ao Ary a coincidência. E ele:
– Eu não disse que beijo mata?
Há alguns anos, quando seus filhos eram solteiros, certo rapaz do Leme andou pretendendo casar-se com a Mariuza, sua caçula. Ary chamou o Flávio, o filho mais velho:
– É preciso acabar com esse namoro.
– Bem, papai. Mariuza não dá a menor atenção ao galã. Pode ficar descansado. Mas, se desse, que teria demais? São dois jovens.
– Não, senhor. Esse rapaz bebe.
– Mas, papai, o senhor também não bebe?
E Ary, num rompante:
– Mas não estou querendo casar com a Mariuza...
Em luta com seus calouros do rádio, dava espetáculos à parte. O calouro – e eu já tive ocasião de escrever isso – é bípede irracional. Um deles anunciou, ao microfone:
– Vou cantar o samba Escrava Isaura, do Dr. Ary Barroso.
O compositor ficou surpreso. Jamais fizera música com o mesmo título do famoso romance de Bernardo Guimarães:
– Palavra de honra, meu amigo. Não conheço este samba. Mas pode cantá-lo.
O calouro interpretou Inquietação, cuja letra diz: “Quem se deixou escravizar etc.” Mas disse o verso da seguinte maneira:
– “Quem se deixou escrava Isaura etc.”
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Tom Jobim e Vinícius de Morais |
– O samba é de Vinícius.
Ary citou o parceiro do poeta:
– E o Tom?
O calouro:
– Ré menor...
Do mesmo gênero, na Rádio Nacional, em programa de perguntas que Ary animou:
– Quantas sinfonias Beethoven compôs?
– Uma – respondeu o concorrente.
– Qual foi?
– A Nona...
Assim era o bom Ary Barroso. Com ele morreu dos mais sadios sensos de humor desta praça – humor que, não raro, fingia ser zanga, ainda para fazer rir. Viveu sempre de música, inclusive ao som da música das gargalhadas. Foi todo alegria. Por isso, o acaso quis que ele fechasse os olhos em pleno carnaval. O acaso, somente, não; ele bem o quis. Detestava o sossego, a quietude, a tristeza. Tanto que, poucos dias antes, José Maria Scassa o encontrou cantando em seu leito de dor. E Ary Barroso explicou:
– Estou cantando, Scassa, porque o silêncio da morte é fogo!
(In Telhado de Vidro. Publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1964)
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