quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

VARANDINHA DE PENSAR

         MINHA DESARRUMADA sala de escrever e de ler tem varandinha. O apartamento é de fundos. De quando em quando vou à varandinha. Penso. Respiro. Volto à máquina ou ao livro. E concluo que a varandinha é tudo o que me resta para pensar e respirar livremente.
Sou homem perigoso. Nenhum Mineirinho ou Zé da Ilha, Sete Dedos ou o Vampiro da Avenida Brasil, Lampião ou Antônio Silvino, nem Barba Azul, Poulailler, Fra-Diavolo, Al Capone, Jack, o Extirpador, Sawney Bean, Joseph Albert Guay, Jimmie Nannery, Maurice Rousson, nenhum deles, até hoje, cometeu maiores atrocidades que eu, ou foi mais perigoso às instituições.
Sou jornalista de alta periculosidade.
Conto o que sei e o que vejo, porque sinto a volúpia de informar. É vicio que tenho, este de noticiar com segurança, de dizer a verdade. Então, um Poulailler, que cometeu mais de setecentos crimes, não chega a meus pés. Sou pior. Setecentas vezes pior. Matar, massacrar, espancar, dar choques elétricos, usar pau-de-arara, maçarico, cassetete, sabre, pata de cavalo, matar jovem indefeso de 18 anos – nada disso tem a gravidade do crime de informar. Este tipo de criminoso sofre reprimendas terríveis:
– O senhor noticiou que mandamos tosquiar estudantes e que os mantivemos detidos sob sevícias.
– Foi a verdade. É meu dever.
– Mas sua notícia é alarmista. Cria pânico na população. O senhor está tentando incompatibilizar o Governo com o povo.
– Juro pelas barbas de Santo Antão como jamais pensei nisso.
– O senhor pode jurar, mas cometeu abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação.
– Desculpe, mas meu fotógrafo está machucado. Meu repórter ficou hospitalizado, com suspeita de fratura do crânio. Eu, apenas, publiquei as fotos de jornalistas, estudantes e povo apanhando. É meu dever. Não estou fazendo campanha contra ninguém, não quero incompatibilizar ninguém, não sou alarmista nem penso, jamais pensei, em subverter a ordem pública. Muito pelo contrário, adoro a ordem, a disciplina, o respeito às leis.
– Comunista!
Já escrevi, certa vez, que não é possível pegar um elefante enfurecido e convencê-lo de que pertencemos à Sociedade Protetora dos Elefantes...
Tenho de refrear, então, meus instintos bestiais, monstruosos, lombrosianos, de informar. Não devo escrever sobre tudo o que sei, sobre tudo o que vejo – e pouca gente sabe que não escrevo tudo o que vejo nem tudo o que sei...
Então, adoro minha varandinha de pensar. Teoricamente, tenho à minha disposição uma área de 8.513.841 quilômetros quadrados, mas acabo de descobrir que tanto espaço me asfixia. Só consigo mesmo pensar e respirar livremente na varandinha de um metro por três. É minha jaula aberta. Onde não sou perigoso. Doravante, darei notícias aos senhores sobre ela. Não cometerei o crime de informar sobre tudo; cometerei, apenas, as insignificantes contravenções de dar notícias sobre minha varandinha de pensar.
Contando a história da vizinha que muda de roupa com a janela aberta, não creio que cometa abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação...

TELHAS-VÃS

·      JOEL SILVEIRA – Meu irmão Joel – irmão pelo afeto – também é pior que Jack, o Extirpador. Sim, porque figura entre os jornalistas que não têm medo de enfarte nem estão interessados em convencer ao ilustre membro da família dos Proboscídeos de que pertence à Sociedade Protetora dos Elefantes. Assim, Joel Silveira é um monstro, um Jack, perigoso para as instituições. Não sabe mentir aos seus leitores, não sabe escrever o que os outros pensam, não faz da profissão escada para altas posições, chega pobre como o Iolando ao fim de uma carreira exercida com amor e abnegação. Pode ser comparado pelos orientadores da inteligência nacional a um criminoso da importância de Henri-Desired Landru, aquele conquistador-assassino de numerosas noivas. Também vai ficar na história como perigoso. Agora mesmo, acaba de cometer crime que é fichinha junto de um latrocínio em dois velhos: publicou pela Biblioteca Universal Popular o livro “Um Guarda-Chuva Para o Coronel”, no qual analisa a política nacional, com o talento e o estilo leve que os leitores conhecem. “Valerá a pena tanto esforço diante da mediocridade e insignificância de nossas elites dirigentes?”, pergunta Paulo Francis, na apresentação do livro. Respondo eu: – “Acho que não. O melhor é Joel arranjar uma varandinha de pensar. Não ofereço a minha porque é pequenina. Não cabem duas lacraias. Também não sei se será fácil encontrar, no momento, outro recanto em que se possa pensar e respirar tão livremente. Mas quem sabe se a sorte ajudará o excelente e talentoso companheiro para ele conseguir outra varandinha, de apenas um metro por três, em 8.513.844 quilômetros quadrados? Pensar e respirar não fazem barulho. Não incomodam os vizinhos. Ninguém sabe que estamos respirando e pensando. É bom que é danado. Arranje outra varandinha, Joel”.
·      HÉLIO SODRÉ – Juiz e escritor. Veio à redação. Matou as saudades de seu tempo de jornal. “Escola de vida”, exclamou. Visitou o Iolando e trouxe ao pacato antonense os três volumes, de sua valiosa “História Universal da Eloqüência”, lançada pela Livraria Forense. É a ação dos grandes oradores, através de todos os tempos. No primeiro volume, fala da antiguidade clássica e do renascimento; no segundo, sobre os povos modernos; e no terceiro sobre os brasileiros. Trabalho que não pode faltar às boas estantes. Estou com ele aqui na varandinha de pensar, ao lado da espreguiçadeira. Sodré também é companheiro de hoje. Nem tudo está perdido.

ÁGUA-FURTADA

“A DOUTRINA Social da Igreja”, de Henry George e Leão XIII, é livro indispensável à compreensão do pensamento católico sobre as duas questões que, atualmente, agitam os povos e revolucionam o mundo: a terra e o trabalho. Pelo menos é o que informa a Gráfica Editora Laemmert. Ao ver isso, desisto de levar o volume para a minha varandinha de pensar. Nasci de família católica, fui batizado e crismado, fiz a Primeira Comunhão, tenho cá minhas simpatias por Santo Onofre e por São Benedito, padre Pita quis que eu fosse coroinha na Matriz de Vitória de Santo Antão, assisti às aulas de catecismo do coadjutor, mas não quero ser tido como subversivo, imbuído da doutrina social da igreja, sobretudo quando esta focaliza o trabalho e a terra. Não me adianta ficar na mesma célula de Dom Hélder ou na de Dom José de Castro Pinto. Já disse que na varandinha deste escritório desarrumado a espreguiçadeira é apenas para que eu possa pensar e respirar livremente. Qualquer dia haverá quem passe a considerar a missa uma concentração perigosa para as instituições, o que, aliás, já aconteceu no dia da missa de sétimo dia pela alma do estudante Edson Luís de Lima Souto. Os estudantes e o povo agrediram a polícia, porque o estudante se suicidou no Calabouço. Foi uma barbaridade! Alguns estudantes pegaram ingênuos e indefesos meganhas e tiras do DOPS e prenderam esses inocentes, maltratando-os, seviciando-os cruelmente. Pobres vítimas. Os estudantes são uns monstros!...

(In Telhado de Vidro. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de abril de 1968)

Um comentário:

  1. O que dizer de Nestor de Holanda? Homem incrível e sábio! Excelente escritor! Tão atual como se vivesse nos dias de hoje...como se vivesse esse caos de 2016...
    O que dizer sobre esse homem? Eu gostaria muito de o ter conhecido...meu avô querido!

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