Não sei se o amigo leitor acredita em cartomancia, ou se vai rir
do que afirmo. Sei, porém, que muitos fatos podem ser previstos pelas cartas de
jogar pôquer.
O dia 1º de fevereiro de 1941 caiu num sábado. Lembro-me como se
fosse hoje. Eu namorava a moça argentina chamada Lolita. Acordamos às 8 horas.
Ela entrou no banheiro; entrei também. Ela escovou os dentes (os dela) e eu
escovei os meus. Ela se meteu debaixo do chuveiro; eu também. Ela veio para o
quarto, vestir-se, eu também. Tudo isso – bem entendido – cada um em sua casa.
Às 9 horas, encontramo-nos. De acordo com o combinado, fomos à cartomante
da Rua Augusta. A gorda senhora, depois de receber 5 mil réis por cada
consulta, disse o futuro de Lolita, prevendo que ela iria casar-se com o
valete-de-ouros, um rapaz louro e bonito, o que, decididamente, não era o meu
caso...
A seguir, a cartomante insistiu no meu futuro. Mandou que eu
cortasse o baralho. Obedeci. E ela, então, pôs as cartas na mesa...
Vi logo as coisas complicadas para o meu lado, porque saiu, de
cara, um four de damas. Era mulher demais para um antonense só! Depois,
o coringa. Formou-se uma seqüência mínima. O ás-de-copas apareceu. A cartomante
identificou-me:
– O rei-de-paus é o senhor.
– Muito obrigado.
Mas o rei-de-paus não apareceu. Insistiu dez vezes, e nada de
minha figura surgir sobre a mesa. Por fim, muito abatida, a cartomante
confessou:
– O senhor não tem futuro aqui, na terra, meu caro. Não consigo
vê-lo nem no fim deste ano. Sua partida está muito próxima. Dentro de dias, o
senhor será saudade.
Abraçou Lolita, que, àquela altura, já chorava:
– Meus pêsames.
– Obrigada.
Saímos abatidíssimos. Na primeira esquina, quase um carro me
atropelou. À porta de casa, minha namorada argentina acabou nosso romance. Eu
ia morrer, e, uma vez que aquele amor estava condenado, achou por bem
antecipar-lhe o fim. Sai tonto. Quase caí do bonde. As palavras da cartomante
não paravam de me soar aos ouvidos: “O rei-de-paus é o senhor”. O condutor do
bonde aproximou-se e ouvi, claramente, quando disse:
– “O senhor não tem futuro aqui, na terra, meu caro”.
– O senhor tem trocado?
Queria que lhe pagasse em dinheiro miúdo. Não tinha troco. Entendi
coisa bem diferente. Catei os níqueis na carteira e ele me agradeceu:
– “Não consigo vê-lo no fim deste ano”.
– Como?
– Não consigo juntar dinheiro miúdo.
Dissera algo nada parecido com o que eu imaginara. Eram as
palavras da cartomante. O condutor notou alguma perturbação em mim. Perguntou:
– “Sua partida está muito próxima”.
– Como?
O barulho do bonde também me confundia. Não me deixava perceber
suas palavras. Insistiu:
– “Dentro de poucos dias, o senhor será saudade”.
– Como?
Gritou:
– O senhor está pálido. Está trêmulo. Sente alguma dificuldade?
– Não, senhor. Obrigado. Estou bem.
– “Meus pêsames”.
– Como?
– Às ordens... Estou às ordens, digo. Se precisar de alguma ajuda,
pode chamar-me.
– Muito obrigado.
No domingo, Lolita não me quis ver. Na segunda-feira, quando a
procurei, deu-me o golpe de misericórdia:
– Já lhe disse adeus. Morra em paz.
Humilhado, corri a agência da Costeira. Comprei passagem. Na
terça-feira, dia 4, às 17 horas, embarquei no Itaqüera. Durante a
viagem, seria capaz de jurar que o navio iria a pique. Ao desembarcar em
Maceió, onde não havia cais ainda, quase o saveiro me imprensou contra o navio.
Momentos depois, um pé-de-vento ia virando a pequenina embarcação. Quando
voltei ao navio, tive de recorrer ao médico de bordo, pois estava sofrendo de
terrível indigestão provocada pelo sururu que eu comera em excesso, num
restaurante da cidade.
Na Bahia, a cartomante já não atuava tão fortemente sobre meu
pensamento. Mas, em várias ocasiões, lembrei-me de suas palavras. Uma dessas
vezes foi no Elevador Lacerda. Tive a nítida impressão de que o ascensor para a
cidade alta não chegaria ao fim da viagem “– Não consigo vê-lo no fim desta
subida”. Dois outros passageiros falaram:
– É excelente este elevador! Não sei se conservam bem os cabos.
Sem conservação, eles se partem.
– “Sua partida está muito próxima”, respondeu o outro.
Escapei do elevador. Nada me aconteceu na Bahia. Voltei ao Itaqüera.
Novamente em alto-mar, lembrei-me da Princesa Mafalda, o navio que
naufragara nos Abrolhos. Iríamos passar pelo mesmo ponto. Ganhei a certeza
absoluta de que também não escaparíamos. “– Dentro de poucos dias, o senhor
será saudade”.
Dentro de poucos dias, entretanto, cheguei ao Rio. Era 11 de
fevereiro. Desembarquei, precisamente, no Armazém 13, o número do azar...
Continuei me safando. Logo depois, fui convocado para o Exército.
Recebi ordem de voltar pelo Baependi. Consegui ficar no Rio. E o Baependi
foi torpedeado...
Não obstante, estava certo de que morreria na guerra, e, para
tanto, nem precisaria de seguir para a Itália. Aqui mesmo, o rei-de-paus seria
metido num sobretudo também de pau e remetido para o Caju...
Faz isso 26 anos e meses. Durante algum tempo, ainda vivi sem
acreditar que vivia. Agora, acredito. Pelo menos, desconfio...
Entretanto, pensando no caso, chego à conclusão de que a
cartomante não errou uma palavra sequer de suas previsões. Eu e Lolita é que
nos precipitamos. A senhora das cartas de jogar pôquer adivinhou tudo:
– “O senhor não tem futuro aqui, na terra, meu caro”. (Meu futuro
deixou de ser na terra, no Recife. Vim para o Rio...) “Sua partida está muito
próxima”. (Três dias depois, parti pelo Itaqüera...) “Não consigo vê-lo
nem no fim deste ano”. (Não me viu mais, mesmo...) “Dentro de dias, o senhor
será saudade”. (Tenho certeza de que virei saudade para Lolita...)
Deu pêsames à moça, mas pelo fim do nosso romance. Sem dúvida por
isso...
E é pena, hoje, não poder escrever para Lolita, mostrando que a
cartomante estava com toda razão. Porque – esqueci-me até de dizer – Lolita
casou-se com o valete-de-ouros e morreu de parto...
(In Telhado de
Vidro, volume I, BRADIL, 1967)
Itaquera ou Itaqüera (Foto: Clydeships.co.uk) |
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