Jamais aquela velha mesa de jacarandá significou
alguma coisa para mim. Estava sempre no centro da sala, principal móvel da
casa, talvez o maior de todos, maior, às vezes, que os guarda-roupas, mas me
passava quase despercebida.
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Manuscrito de Nestor de Holanda (junho de 1950) |
Seu tamanho normal, o de uso cotidiano,
era de quatro tábuas e as duas cabeceiras. Havia dias, porém, em que ela
recebia mais seis tábuas, e, então, ocupava toda a enorme sala, cercada de
cadeiras, coberta de pratos e talheres, ganhava a toalha de linho bordada à
mão, guardanapos dobrados em forma triangular, terrinas, travessas, pratos brasonados
– mas isso tudo só acontecia nos dias festivos, quando vinha gente de cerimônia
e não se podia tirar o paletó à mesa, e nós, meninos, não tínhamos licença de
falar durante a refeição.
Nos dias comuns, todavia, ela se mantinha em
seu estado normal com as quatro tábuas. Toalha vermelha de xadrez, pratos de
uso, talheres ordinários (a faquinha velha de cabo preto; era a mais afiada),
copos simples, cadeiras com assentos de palhinha.
Agora, a indiferença do leiloeiro a
apregoar os móveis da sala, frio, mercenário, de martelo à mão, gritando e
batendo na mesa:
– Quem dá mais?... Quem dá mais?...
Os lances, os terríveis lances dos
interessados, alheios a todo o passado de uma mesa de jacarandá que pode
crescer muito mais, que pode ir a dez tábuas e duas cabeceiras. Dentro em
pouco, ela sofrerá um preço e seu destino será outro. Para onde irá, levada
pelo novo dono?
A vida está cara. Nas mesas não há mais a
mesma fartura. Tudo ficou difícil. Não creio a velha mesa da casa de meu avô,
tão imponente – dez tábuas, duas cabeceiras, pés grossos bem torneados, coberta
de pratos e talheres, toalha de linho bordada à mão, guardanapos dobrados em
forma triangular, terrinas, travessas, pratos brasonados – não creio que a
velha mesa de meu avô torne ao fausto dos bons tempos. Outras caras. Outros
gostos.
– Quem dá mais?... Quem dá mais?...
Por enquanto, a sala ainda está como
sempre foi: forrada de papel amarelo, com desenhos vermelhos – desenhos que
jamais entendi. Caras? Máscaras? De um lado, parece olho; do outro, não tem
olho - tem nariz, boca e uma orelha. Entre as figuras estranhas, flores...
Desde menino vejo, sem entender, as
estampas do papel das paredes da sala.
Lembro-me, ainda, de quando todo o casarão
foi forrado – o casarão de dois andares, de vinte e dois quartos, o casarão da
farmácia de meu avô. Cada pessoa da família escolheu a cor de seu cômodo. Minha
mãe, a única que nada exigiu. Era de querer pouco. Concordava sempre. Minha
tia, porém, pediu o azul e dourado de seu gabinete, e o azul e branco de seu
quarto. Minha avó fez questão do grená e amarelo da sala de visitas. E acho que
ficou a cargo de meu avô o papel da sala de jantar.
Os homens trouxeram escadas e rolos e latas
de cola – o cheiro da cola ficou, até hoje, em minhas narinas. Era forte,
enjoativo. Durante dias, nem o cheiro do feijão da Rosalina – feijão de panela
de barro – o abafava. E os homens subiram até na velha mesa, para forrar as
paredes.
Foi a última reforma por que passou o
casarão. Uma das minhas tias ia casar-se. E a mesa, assim como todos os móveis,
envernizou-se, para receber as dez tábuas, a toalha de linho bordada à mão,
guardanapos dobrados em forma triangular, terrinas, travessas, pratos brasonados,
no almoço depois da cerimônia civil, e na ceia (em dias de festa não se
jantava; fazia-se ajantarado), depois do ato religioso.
O guarda-comida à direita da mesa. A
cristaleira, à esquerda. Dois consoles. Acima de um deles, à cabeceira de meu
avô, o quadro da Ceia Larga. Sobre o outro, um Santo Onofre de costas para a
rua. O santo carrega um saco, e, por isso, deve ser usado naquela posição, como
se estivesse entrando em casa, para trazer dinheiro, comida e felicidade. E
havia quatro cantoneiras, com plantas, além do lustre imenso, de cristal, que
se iluminava, apenas, nos dias festivos, quando a mesa recebia as dez tábuas.
– Vou bater... Quem dá mais?... Um...
dois... três...
– Um conto de réis!
Estava sendo leiloado o grande jogo de
louças, os pratos, as travessas, terrinas, xícaras, chávenas, bule, leiteira,
fruteira, tudo com o brasão da família. Tantas peças, de tão boa qualidade, que
as louças já estavam em um conto de réis e o leiloeiro gritava que era pouco:
– Quem dá mais?... quatro... cinco...
seis... Vou bater...
– Um conto e cem!
(Obs. Texto inédito, escrito
em junho de 1950, mês que faleceu sua tia, a escritora Martha de Hollanda.
Original em manuscrito, digitado em 6 de dezembro de 2011)
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Sobrado citado no texto situado em Vitória de Santo Antão, Pernambuco. (Foto de Nestor de Holanda, tirada em julho de 1955) |
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